O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XXI. “O homi endoidou de vez”

Em Xavier, a noite foi intranquila e longa. Logo cedo, a vila é tomada por intenso movimento. Francisco vai até a rua, chama um rapaz e pergunta o que se passa.

— Essa madrugada o boto atacou um caboco na vila do Cupuaçu, do outro lado do rio Claro. O mestre presta atenção.

— Ele está no posto de saúde, correndo risco. Parece que o sujeito andava mexendo com as cunhantãs.

O professor decide agir.

— Eu vou ao posto.

Telma já está por perto.

— Eu vou junto.

Partem, e as poucas pessoas que os acompanham até um trecho do caminho logo se desinteressam e retomam os seus afazeres.

No ambulatório, um jovem médico narra o que sabe ao professor:

— Ele tava desmaiado, levou uma surra. Parece que quem bateu queria mesmo dar uma lição no infeliz. Falam que esse homem andava perseguindo as menininhas, era um conhecido pedófilo. Espalharam que foi o boto vingador.

Telma se achega:

— Tá tudo bem?

— Sim.

Francisco deixa rapidamente a enfermaria e sai do posto de saúde, sentindo-se sufocado e precisando de ar puro. O coração dispara e uma incontida e desconhecida fúria começa a tomar conta do seu interior. Telma estranha.

— O que aconteceu, professor? Tu tá suado, pálido, quer alguma coisa? Uma água?

— Não, obrigado, chega de água! Mas confesso que também gostaria de saber o que está acontecendo. Essa história desse boto.

Telma, para confortar, relata a sua impressão:

— Isso nunca aconteceu desse jeito. Esse boto é bem diferente, parece que tá mandando um recado pra gente.

O professor segue o raciocínio.

— Você acredita que possa ser algum tipo de retaliação? Uma forma de vingança contra as pessoas?

Telma suspira antes de responder, mas logo confirma, com os olhos arregalados.

— Pode ser, não sei mais. Mas o boto sempre foi culpado de tudo. É culpado até da morte da mulher do Messias, e a gente não sabe até que ponto essa história é verdadeira, não é mesmo?

A mulher de Messias. Francisco recupera a conversa que teve com Janaína, na noite do jantar, e pensa que esse enredo está confuso.

A vizinha prossegue:

— Esse boto deve estar com ódio de sempre ser o culpado de tudo.

Francisco se recorda das palavras de Gilmar quando disse ser um boto diferente, uma espécie de cobrador. “Se Telma tiver mesmo razão…”, raciocina o mestre. “ …onde isso irá chegar?”

O professor sente que aquela é a oportunidade perfeita de contar os fatos ocorridos na vida dele e sua possível relação com esses acontecimentos bárbaros. Porém, ele hesita, demora demais e a oportunidade desaparece junto com Telma.

Embora Xavier tivesse tudo para representar uma aventura maravilhosa, as encruzilhadas da vida tiram Francisco da linha. Perplexo, inquieto e, até certo ponto, temeroso, o professor retorna para a casa na beira do rio. Tudo lhe parece estranho. Como encarregado de um estudo sobre a lenda, sabe que não deve misturar emoção com razão, até porque necessita de um grau de frieza e imparcialidade para conseguir produzir um trabalho sério, confiável.

Chegando em casa, cansado, o professor busca a ligação entre os fatos e os relatos recentemente ouvidos em conversas. O sonho e a ação do boto o perturbam. Na varanda, pensativo, observando o rio, ele identifica um boto a se exibir e corre para a margem. O professor lança pedras e paus na água. O animal desaparece rapidamente, mergulhando na profundeza. De longe, sem ser notado, Messias observa tudo e, meio assustado, pensa consigo: “O homi endoidou de vez”.

Passado o rompante e com o ânimo mais sossegado, o professor resolve caminhar a esmo por uma estradinha vicinal de terra. É um momento de reflexão em meio à natureza exuberante, ideal para organizar as ideias e oxigenar o cérebro, e para empreender uma jornada muito mais segura do que um passeio de canoa.

Embora no meio do nada, isolado da civilização, seus problemas dificultam o mero ato de apreciar a natureza cheia de vida, presente em toda parte. Árvores centenárias, pássaros exóticos e de plumagem exuberante revelam um espetáculo de cores e sons.

No solo, sapos e pererecas, formigas e calangos cruzam o caminho como loucos, dando boas-vindas e alegrando aquela trilha do sossego. Absorto naquele mundo verde, o mestre analisa sua vida e seu relacionamento com Clara, na cidade grande, bem como as experiências com as mulheres de agora, o caso do boto, os ataques criminosos. Todos esses aspectos da vida provocam nele uma sensação enorme de peso. Caminhando como se estivesse em outra dimensão, alimenta enlevos e utopias. Volta à realidade ao ouvir o barulho que indica a aproximação de um automóvel, e logo se arrepia, ao recordar o fato de que só há um veículo motorizado na vila.

Ao chegar mais perto, o carro para e o mestre percebe tratar-se de Janaína, sozinha. Animada e com um sorriso de orelha a orelha, Janaína tenta agradar o professor.

— É uma agradável surpresa encontrá-lo aqui no meio do nada.

— Como vai, dona Janaína, passeando?

— Sim. Estou indo me banhar no lago do Tucumã. Quer ir junto?

Para sua própria surpresa, o professor toma mais uma atitude inédita. Entra no carro e acomoda-se, procurando a posição mais confortável possível. Sem muita conversa, os dois seguem pela estrada mata adentro rumo ao lago. Janaína toma a iniciativa.

— O senhor não consegue relaxar nem num lugar como este?

O professor respira fundo e arrisca uma gracinha:

— Não há lugar no mundo onde isso seja possível… quando se tem uma companhia como a da senhora. Uma mulher assim causaria e deve causar embaraço em muitos homens.

Libertando-se dos grilhões da timidez, o professor olha para ela.

— O senhor está me cortejando?

— Não, dona Janaína, a senhora…

— Apenas Janaína, por favor.

— É que…

Francisco gagueja, tomado, novamente, pela timidez. Aquela coragem toda de instantes atrás sucumbiu perante a habilidosa guerreira dos lagos amazônicos. Ela, inteligentemente, elabora a saída da sinuca:

— Não precisa perder tempo me respondendo, não faz a menor diferença. É apenas a vida. Não estamos atrás de grandes respostas. Mesmo porque ninguém sabe nada: “Só sei que nada sei”.

O mestre, com um ar de pura excitação em razão da resposta, acaba de consentir que tudo pode e que está nessa vida para vivê-la integralmente, como se cada segundo fosse sagrado, pois o que importa é a felicidade. Tentando encerrar a conversa, ele sentencia:

— Então, viva e deixe viver!

Os dois começam a rir, enquanto ela é obrigada a encostar o veículo, já que a mata se fecha, impedindo a passagem. O professor desce do carro e observa a natureza intacta ao redor. Pegam algumas toalhas e seguem mata adentro. A trilha é bem fechada, quase nunca usada. Aos poucos, a floresta vai se abrindo e, do outro lado, exibe a beleza mais intocada que um homem urbano poderia presenciar: um lago bem no meio dos pés de buritis, com pequenas praias em toda a beira, intercaladas com pequenas moitas de vegetação aquática.

Num pequeno pedaço de areia branca, os dois estendem as toalhas. O momento é oportuno para falar de coisas sem importância, da vida excessivamente pacata em Xavier. Os olhos do mestre varrem o corpo da mulher, que percebe a ousadia. Ela se diverte, e a ansiedade do casal está cada vez mais explícita nas atitudes e movimentos.

Na beira do lago, a brisa refresca muito pouco. Janaína, audaciosa, tira o vestido, fica apenas de calcinha, mostrando ao mestre que sua idade não é suficiente para derrubá-la. A mulher do patrão tem a fama de ser dona dos seios mais lindos da região. Francisco admira. Em nenhum momento lembra de Telma, Clara ou Irina.

A bela mulher de Lindemberg entra no lago até ficar submersa na altura da cintura. Mergulha nas águas esverdeadas do Tucumã e banha os cabelos negros e longos. Percebendo o constrangimento do professor, o convida a entrar na água.

— Vem aqui comigo.

Tomado por suas pulsões, o mestre arranca os sapatos, tira a roupa e anda até a mulher que lhe estende a mão. Os dois se beijam. A água que brota das raízes dos buritizeiros lava os corpos ardentes pelo desejo. Francisco sente que a experiência sexual dentro do lago será inesquecível.

Os minutos que se desenrolam atravessam séculos, homem e mulher, o coito selvagem, o mais puro amor. O desfecho explode em gritos e gemidos, desabafos de berro seco.

Depois de um tempo abraçados, ali dentro do lago, Janaína resolve sair. Francisco vai atrás e puxa conversa.

— Eu gostaria de tocar num assunto, mas não sei se devo; afinal, acabamos de ter uma experiência fabulosa e não queria estragar.

Ele tenta abordar o assunto de maneira sutil e cortês. Janaína ajuda a deixá-lo mais à vontade:

— Não existe momento melhor para se falar de coisas desagradáveis.

— O que aconteceu entre o seu marido e a mulher do meu caseiro?

Na mesma hora, a fisionomia dela muda, e passa de sorridente e irreverente a séria e contida. Afasta-se um pouco dele, como se precisasse respirar fundo para falar sobre esse assunto. Olha nos olhos do mestre e diz:

— Eu não sei o que realmente o senhor quer saber, mas posso dar uma resumida no caso e, depois, o senhor pode me perguntar o que for mais interessante. Tudo bem assim?

Ele concorda

— Meu marido, o patrão dessa vila, se engraçou pela mulher do caseiro do senhor, por sinal, um homem muito trabalhador. Já havia uma nítida diferença de idade entre eles e, ainda por cima, o pobre homem não dava muita atenção para a esposa. A moça também se engraçou pro lado do Bergue. Pois bem, o caseiro não perdoaria uma traição dessas. Mas o pior ainda estava por vir: a caboca pegou barriga. Com medo de morrer, Bergue fez a mulher inventar uma história que o senhor já sabe.

O professor faz cara de desinformado.

— Que história?

— A história de ter engravidado de um boto, a mulher era casada, a única coisa que um homem pode perdoar por aqui é um chifre de boto, que é um ser poderoso, encantador, seduz e vai embora.

Janaína faz uma pausa. Logo prosseguiu:

— As coisas, porém, não saíram como deveriam e a caboca, envergonhada, acabou se matando, bem aqui nesse lago… levou o peso da culpa para o fundo dessas águas.

Francisco olha assustado para dentro do lago. Esquecera que Telma já havia contado esse detalhe. Com o estômago embrulhado, ele se arrepende de ter entrado naquelas águas. Janaína dá continuidade à sua história:

— É por isso que ele diz ser o boto quando está bêbado, se culpa pela a morte da caboca

O professor, a essa altura, já começa a ouvir coisas.

— Você ouviu? Um barulho no mato?

— Barulho? Não, não ouvi nada. Acho que o senhor ficou impressionado. Mato tem bicho, mas aqui eles não são tão grandes. O nosso barulho foi muito mais assustador que o dele, tenha a certeza disso.

 

O professor sabe que não está sozinho à beira do lago. Subitamente, enxerga Gilmar, nu, a desfilar nas margens do lago do Tucumã.

— Acho melhor irmos embora daqui, não estou acostumado a ficar muito tempo em contato direto com a natureza, isso me deixa um pouco aflito. Sou um homem urbano, sabe como é?

Fingindo que entende, embora distante dessa realidade, a mulher do patrão levanta-se e os dois vão embora. O mestre segue calado, ciente de que não pode se manifestar, em voz alta, sobre nada do que está se passando à beira do lago, embora o próprio marido de Janaína tenha sido um “boto oportunista”, responsável pela desgraça de uma família. Na angústia do seu silêncio, tudo o que o professor deseja, no momento, é sumir.

No bar do Miro, o patrão bebe mais uns goles de cachaça. Jaílson, sem muito assunto, observa de longe, apinhando-se com o barbeiro e o dono do boteco, mais perto do balcão. Jonas também está por ali, sentado sozinho em uma mesa perto dos três. Lindemberg sente que algo o incomoda.

Extasiado e relaxado, o professor está feliz. De volta à vila, é devolvido em casa pela primeira-dama. Antes de entrar, Francisco é surpreendido por um sujeito que sai da toca escura e parte com violência em sua direção acertando-lhe um soco, seco e certeiro, deixando-o completamente nocauteado. Grogue e se retorcendo no chão, o professor vê, meio distorcida, a silhueta de uma pessoa, e reconhece Jonas, meio trôpego e possuído pela fúria do álcool. O filho do boto desfere covardemente mais um golpe, e sai furtivamente.

O mestre fica desacordado, sangrando. Telma o encontra e grita por Messias, que nada pergunta, apenas ajuda. No quarto, no leito, iniciam-se os primeiros socorros. Telma, aflita, olha preocupada. Messias procura confortá-la:

— Ele vai ficar bem. Já vi surras bem piores que essa.

Colocando uma pasta feita de ervas, Messias inicia o tratamento com uma receita antiga da tribo dos mucuraras:

— Esse unguento é milagroso.

Telma se pergunta: “Quem teria coragem de agredir um homem, pelo menos aparentemente, incapaz de machucar alguém?” Após algumas horas, Messias se recolhe para descansar. Sozinha no quintal, Telma vai até o quarto e se acalma ao ver que o sangramento estancou.

Depois de três dias, já bem melhor, mas ainda com o ferimento em fase de cicatrização, o professor tem a sensação, durante o sono, de que alguém o observa. A agitação é visível aos olhos de Gilmar, que vela o sono do discípulo sem fazer barulho, quando a vizinha não está por perto.

Ao acordar, incomodado, o professor se dá conta da presença do boto, sentado na cadeira ao lado da cama, de pernas cruzadas.

— O que você quer aqui?

— O senhor sabe quem é o culpado dessas coisas estarem acontecendo, não sabe?

Gilmar respira fundo, como se fosse revelar um grande segredo.

— Do que você tá falando?

Gilmar interrompe:

— Sei que tem alguém tramando contra a vida daquelas mulheres. E vai ser bem antes do amanhecer. O senhor tá perdendo tempo.

— De quem você está falando?

— As mulheres do casarão de Lindemberg estão correndo perigo.

— E quem seria essa pessoa interessada em fazer maldade contra essa família?

— A pessoa que o agrediu. O senhor ainda lembra quem foi que bateu no senhor?

Mal termina a pergunta, e o boto mesmo responde:

— Jonas. Não foi isso? Não foi ele?

Gilmar prepara sua finalização e se levanta, mostrando-se um verdadeiro manipulador, muito habilidoso com as palavras e com o colocar das coisas. Aflito, tomado de desespero, o professor lembra das ameaças de Jonas sobre fazer com aquelas mulheres algo muito pior. Levanta-se da cama com dificuldade. O professor sabe que o filho do boto não brinca em serviço, até porque acaba de ter uma prova disso. Caminha até a frente da casa e sai andando pelas partes mais escuras das ruas, sob as sombras das árvores. Mal se dá conta que está sendo observado por Jonas, ainda bêbado, sentado no escuro, debaixo de uma árvore. Jonas resolve segui-lo.

Em frente ao casarão, Francisco se abaixa, para não ser notado pelos vizinhos da redondeza. Vê a janela entreaberta e pensa, equivocadamente, que Jonas possa ter entrado por lá. Nem percebe que o jovem encontra-se ali, bem atrás dele. Dentro da casa, depois de pular pela janela, o professor leva uma paulada na cabeça e desmaia. Nesse exato momento, o mundo mais uma vez escurece para Francisco Bonartério.

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