O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XXII. Te mando pro inferno

Amanhece em Xavier como sempre ocorre na floresta, o sol empinado, o vento espraiando o verde. Francisco acorda e vê que está nu, sem qualquer noção do que ocorrera durante a noite no casarão. Surpreso, ele constata que o quarto está do mesmo jeito que deixou. Uma insuportável dor de cabeça o aterroriza. Mexendo no cabelo, sente um galo enorme e dolorido.

Telma chega de repente o encontra ainda sem roupa. O mestre apanha uma toalha e se cobre, meio sem jeito. Telma conta o motivo da invasão no quarto. A noite foi sangrenta em Xavier.

— Eu tenho uma notícia muito chocante, que não posso deixar de transmitir. O Jonas, aquele filho do boto, foi preso essa manhã dentro do casarão do patrão. Jaílson me disse que a casa tava lavada de sangue. Ele tá sendo acusado de ter matado o patrão. Um assassinato brutal.

Francisco não entende. A história lhe parece inverossímil. Porém, lembra-se das palavras de Gilmar no quarto, durante a noite, e da caminhada que fez até o casarão. Lembra da sua intenção, da tentativa de impedir um crime, mas não se recorda dos acontecimentos a partir dali. Sabe que apanhou mas não tem noção de como voltou da casa de Lindemberg.

 

Emocionada e assustada, Telma começa a chorar e abraça o professor, que se mostra cada vez mais confuso, abalado.

— As mulheres estão bem?

Telma confirma.

— Estão em pânico. Aterrorizadas.

Francisco, inconformado, diz:

— Elas estão bem… Mas o patrão, eu tentei, mas me bateram. Eu tentei evitar. Eu falhei.

Telma não entende.

— Desculpe, o senhor foi aonde? O que o senhor não conseguiu evitar? Do que o senhor está falando?

O professor completa:

— O boto alertou, sem entrar em detalhes.

Para assombro da vizinha, ele prossegue:

— Não adiantou nada eu ter ido até lá…

Francisco percebe o pavor no semblante da moça.

— Mas quem me bateu? Quem me trouxe pra cá?

— Eu não sei o que o senhor quer dizer.

Depois de refletir sobre as perguntas do mestre, ela conclui: “Ele não lembra que fui eu e o Messias que o trouxemos pra cama, deve ser isso”. E responde certa de que está no caminho.

— Fomos eu e o Messias que trouxemos o senhor pra cá, foi anteontem. Encontramos o senhor sangrando aqui na frente da sua casa. Quem bateu no senhor foi o Jonas. O senhor não lembra?

Francisco e Telma, neste momento, não estão em sintonia. Enquanto ele diz uma coisa, ela finge entender outra, totalmente diferente. O professor se cala.

Telma também silencia. Aproveita que o mestre fecha os olhos e sai do quarto.

Francisco fica quieto, lembra da noite anterior, repassa aquele filme na mente, procura uma explicação lógica para o ocorrido. Quem bateu na cabeça dele quando adentrou o casarão? Quem o levou para casa? E como o Jonas foi preso? Alguma coisa muito esquisita aconteceu. Um homem morreu. Por quê? Ele não sabe dizer, embora estivesse na cena do crime. O mestre é interrompido bruscamente:

— Salvo pelo boto novamente, hein?

O mestre, surpreendido, depara repentinamente com Gilmar, que reaparece do nada, segundos depois da saída de Telma.

— O que você está fazendo aqui?

— Como já disse, salvei a sua vida novamente. O Jonas bateu na sua cabeça e tentou incriminá-lo, mas eu tirei o senhor de lá a tempo e ainda quase esmaguei a cabeça daquele filhote fajuto de boto com uma escultura de mármore.

— Se eu estava desmaiado, como você me trouxe até aqui?

Francisco insiste nos detalhes, enquanto o boto continua a andar de lá pra cá:

— Como tá se sentindo? O cara quase afundou seu crânio. Deixe-me ver, será que tá parecido com o buraco da minha cabeça? Acho que o senhor vai ter que usar chapéu também…

O mestre se enfeza com as brincadeiras tolas, inoportunas, e empurra Gilmar.

— Me deixa! Como você sabia que o Jonas ia cometer essa atrocidade?

O boto faz uma cara de cínico e responde:

— Apenas sabia.

O professor acredita ter sido mesmo o Jonas quem matou Lindemberg, mas desconfia de Gilmar, que se diverte, fazendo o que quer com o pobre homem da cidade grande. Olhando pela janela, o boto observa Messias, no quintal, revirando o mato capinado. Francisco se levanta da cama.

— Perdeu alguma coisa ali?

— Eu não, mas o senhor sim.

O boto se expressa com cinismo. Francisco vê o caseiro se abaixar e juntar uns panos sujos no meio do lixaral. Gilmar reage:

— Isso não é nada bom.

— O que não é bom?

— São as roupas que o senhor usou esta noite, estão sujas de sangue; e podem incriminá-lo. Acho que o senhor vai ter uma prosa bem difícil com o seu caseiro. Vá arranjando uma boa desculpa, uma boa mentira.

O professor está começando a compreender onde Gilmar quer chegar:

— Mas eu não matei ninguém.

— O delegado não vai querer saber se o pato é macho ou fêmea. O homi vai querer ovo! E se depender dele, seus ovos estão sempre muito mais valorizados que os ovos do pato, ou, se preferir, pode dizer os ovos do botinho…

Francisco nota a maldade no olhar de Gilmar e crê que o boto possa estar tentando prejudicá-lo.

— Por que você deixou as minhas roupas ali? Por que não jogou no rio? Tocou fogo? Ficaram ali para serem encontradas por alguém?

O boto relaxa, sem muitas preocupações:

— O senhor queria qu’eu desse fim nas provas de um crime?

Francisco se irrita.

— Você armou isso pra mim. Diz a verdade. Se existe culpado aqui, é você!

Gilmar tenta ser mais convincente:

— Desculpe, mas não adianta dizer isso pra mim. As roupas são suas e todo aquele sangue… como irá provar inocência sem a minha ajuda? Não sei se meu depoimento ajudaria alguma coisa. Mas posso afirmar que Jonas, a essa altura, já deve estar contando boas mentiras para o delegado.

O assassinato do patrão chocou os moradores da vila. Autoritário, violento e abusador, Lindemberg se impunha com ameaças covardes. Era a voz do poder. Tinha por hábito comprar sexo. Como Abreu, também se aproveitava da pobreza e da inocência de crianças para colocar em prática suas tendências pedófilas. Causava medo e ódio, ao mesmo tempo. Apesar de tudo, a brutalidade do crime repercutiu entre os nativos como um sinal de que algo acima da compreensão geral estava ocorrendo no vilarejo. Para muitos, parecia maldição.

Ao contrário de Abreu e Amelinha, o corpo do patrão saiu de Xavier com honras de autoridade. Seguiu para Manaus numa tarde sombria, de nuvens baixas. Janaína e Irina se despedem dos amigos do marido. Estão voltando para a capital para enterrarem o maior ícone do coronelismo do delta amazônico. O delegado não esconde a tristeza pela mudança de Janaina.

Com habilidade, o raciocínio organizado, Gilmar continua:

— Em quem o senhor acha que o delegado vai acreditar? Não se esqueça que Jaílson tinha uma relação de muita intimidade com a vítima e com a mulher da vítima.

O mestre sente as mesmas náuseas que sempre o acometem quando é pressionado. “O que vou dizer pro Messias? Por favor, devolva essas roupas que são minhas e elas podem me incriminar, sou inocente, não me entregue para a polícia. A culpa disso tudo é de um miserável de um boto que resolveu fazer da minha vida um inferno! É isso que devo dizer para o Messias?”, pensa.

O professor demonstra irritação. Como se pudesse ler pensamentos, Gilmar diz:

— Acho que deve ser mais ou menos por aí. Sabemos que não foi o senhor. As roupas são suas, podem incriminá-lo, com certeza, mas não foi o senhor. A não ser que… O senhor não está mentindo, está?

Sarcástico e bom na arte de tirar os outros do sério, Gilmar faz de tudo para provocar Francisco. Este, porém, se retira e segue para o casebre de Messias. O caseiro se assusta com a repentina entrada do patrão e esconde as roupas sujas de sangue debaixo de algumas redes de pesca. Francisco consegue identificar o detalhe na ponta da camisa, e constata ser a mesma que estava usando na noite anterior. Os dois mal conseguem entabular uma conversa. Agem como estranhos.

Messias pega uma toalha, pede licença e vai tomar banho. Francisco retorna para casa e percebe que Gilmar desapareceu. Telma chega:

— Não devia ficar andando, volte pra cama, vamos. O senhor precisa se recuperar.

Atordoado, Francisco obedece.

— Telma, preciso muito da sua companhia.

— Por acaso o senhor vai querer qu’eu durma aqui essa noite? Se o senhor quiser eu fico, mas preciso terminar umas coisas lá em casa.

Telma assimila o olhar de clemência.

— Tudo bem, eu fico um pouco agora, até o senhor relaxar. Não se preocupe, nada vai lhe acontecer. Eu vou cuidar do senhor.

Ela senta na cama e deixa que ele coloque a cabeça nas suas confortáveis coxas. Acaricia o rosto e os cabelos dele. O conforto o faz suspirar. É quando Francisco se dá conta de que pode estar se apaixonando por essa cabocla, filha de Tupã, muito mais bela que Jaci. Só não percebe que já está completamente perdido pelos encantos da linda morena, cor que lembra urucum com açaí servido ao leite de peixe-vaca, e que lhe dá uma luz e um brilho especial. As mãos de fada da vizinha induzem o professor a um sono reparador.

O sol já se pôs faz tempo em Xavier. Francisco acorda com Telma na cama, ao seu lado. Na madrugada, não há estrelas nem luar. Caminhando em direção ao rio, cada vez mais cheio, e aproximando-se da árvore onde Messias encontrou as roupas sujas de sangue, o professor sente aquele calafrio. Olha para trás e vê Gilmar saindo do barraco do caseiro.

Francisco se aproxima e o boto rapidamente desaparece na escuridão. Nenhum sinal de Messias. O professor abre a porta do casulo. Junta as roupas sujas de sangue, que, por sorte, ainda estavam no mesmo lugar e sai.

Na beira do rio, a força da correnteza arrasta tudo pela frente. Francisco não pensa duas vezes: joga as evidências do crime ali e constata que elas desaparecem rapidamente nas águas leitosas e rebojosas.

De volta ao seu quarto, Francisco vê que Telma ainda ressona baixinho na mesma posição, e aproveita para deitar-se ao lado dela, com cuidado para não acordá-la. Mais tranquilo, pega no sono e logo sonha com as vítimas de Gilmar, com os homens esfacelados por porretes e pauladas. As últimas experiências que viveu se apresentam com nitidez aos seus olhos.

Na delegacia, Jonas toma café da manhã com Oliveira. Preso e autuado em flagrante, pelo assassinato de Lindemberg, e agora também pelas mortes de Abreu e Amelinha, acusações qualificadas pela torpeza e brutalidade dos meios de execução, o filho do boto se explica:

— Oliveira, eu não faria uma coisa dessa.

— Tu tava fedendo a cachaça, cabra. Tu não sabia nem teu nome.

O delegado chega de banho tomado, furioso. Oliveira sai de perto da cela e entra na sala de Jaílson, enquanto Jonas passa a mão na cabeça, buscando encontrar uma solução imediata para sair dessa grande enrascada.

 

Oliveira abre a cela para Jaílson entrar, segurando um 38’ especial com a mão direita. O filho do boto está com muito medo, sabe que vai morrer, até porque estava a par do chamego do delegado com Janaína.

— Me diz qualquer coisa pr’eu não enfiar uma bala na tua cabeça agora. Qualquer coisa que possa te dar mais uma hora de vida.

Com uma arma engatilhada na boca, sem poder responder e com poucas chances de sair dessa com vida, o filho da dona Diva se esforça para lembrar de algum pretexto que possa lhe servir como álibi e relata o que imagina ser o certo para o delegado:

— Foi o paulista, delegado. Eu o vi entrando na casa do patrão. Fiquei próximo à casa, observando, mas ele demorou muito; ouvi um barulho estranho, de luta. Então eu entrei, recebi uma porrada na cabeça e apaguei. Foi isso. Eu não fiz nada, juro.

O delegado, dominado pelo ódio, segura com firmeza o queixo do suspeito e dispara:

— Bosta azeda, se tu tiveres mentindo, caba safado, eu te mando dessa daqui pra pior, te mando pro inferno! O que fizeram com o patrão não vai ficar impune, ouve o qu’eu tô te dizendo.

O delegado solta o queixo do filho do boto e sai cela. Oliveira, separado pelas grades, emenda:

— Tu tá lascado. O chefe vai te matar. Dessa vez não tem misericórdia. Não pensa que vai só ficar preso como das outras vezes porque não vai.

O preso se declara inocente, com toda a força, do fundo da sua alma, e se põe a rezar.

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