O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XX. O jantar

Participam do jantar o patrão, a mulher, a filha e os convidados – além de Francisco, Jaílson, o delegado, o barbeiro Carlitos e Miro, o dono do boteco. O convite para o delegado partiu de Janaína. Todos chegam e comem. Segundo as leis daquela terra, ficou pronto, pode servir.

O romance de Janaína com Jonas esfriou e agora ela procura garantir a sua imunidade com a lei. O marido consente, pois sabe que está devendo muito. Esses são os pensamentos de Francisco, que ainda lembra da equipe de policiais de Manaus e da ineficiência dos braços da Justiça. Daquele crime horrendo, Abreu e Amélia, nada se descobriu, porque nada foi investigado.

Investido de seu papel de pesquisador, o professor resolve prestar atenção nas pessoas que estão no casarão. Flagra Carlitos olhando para a empregada da família e combinando um encontro, enquanto Miro checa o estoque de garrafas cheias do patrão. Observa também a filha do casal, fogosa e atirada, e a indisfarçável irritação do patrão com as insinuações de Jaílson e o discreto aceite de Janaína.

 

Os cascos de tartarugas estão abertos e torrados, servindo como recipiente para colocar farofa. Sarapatéis e guisados dos quelônios espalhados nos quatro cantos da mesa dão um toque de rusticidade tropical ao requintado jantar. Bebida também não falta, da cachaça da região até o mais caro e fino uísque envelhecido.

Entre uma garfada e um trago surge o assunto em voga: o reaparecimento do boto e o ataque às novas vítimas. Mal o patrão começa a comer, já fica irritado com Janaína, que debocha do marido.

— Vê se não vai beber muito, hein? Depois vira boto por aí e já viu como é.

O mestre observa até onde vai a frieza de Lindemberg. Janaina provoca. O patrão resolve sair da sala, deixando a mulher e a filha responsáveis pelo entretenimento dos convidados. O clima fica pesado e constrangedor.

Envergonhado, Francisco pede para usar o banheiro, no que é prontamente atendido. Irina, atenciosa ao extremo, aproveita para mostrar a casa. Carlitos passa a mão na empregada e Miro enche o copo de pinga.

Irina usa um vestidinho muito curto. A sala, enorme como tudo naquela casa, tem ao centro uma grande mesa, onde encontra-se uma peça pontiaguda de cristal, uma espécie de bastão. A louça do casarão é composta pelas mais finas e delicadas taças, para todas as finalidades, eventos e bebidas. Na cozinha, há um fogão a lenha com forno, usado para assar pães, bolos de macaxeira, quartos de anta, javali, cutia e outras delícias. Sobre o fogão, um varal, chamado fumeiro, exibe carnes de caça para serem defumadas.

Finalmente chegam ao banheiro, o lugar mais reservado do casarão. O ambiente é espaçoso e tem uma enorme banheira. Irina convida Francisco a entrar. Aproveitando-se da privacidade, ela acaricia o rosto dele suavemente. O professor sente a pele queimar e pede delicadamente à jovem que o espere do lado de fora. Irina sai, enquanto ele fecha a porta. Francisco sabe que já não está em condições de resistir.

Quando a porta do banheiro se abre, Irina, de prontidão, entra rapidamente e se joga nos braços do professor. Os dois começam a se beijar. Indomável, ela fecha a porta com o pé, sem largar o pescoço do homem que deseja desde o primeiro encontro.

Francisco desce a mão pelas costas de Irina. Nota a maciez da juventude. Por um instante, sente culpa.

Irina gosta. Não faz ideia das crises de consciência vivenciadas por Francisco. Enquanto agarra a jovem, o mestre ouve, em seus pensamentos, o boto dizer: “Faz o que elas querem, é tudo o que elas querem”.

Dominado pelas pulsões que o transtornam, o professor segue seu instinto – e o casal avança no ritual de relaxamento e satisfação. Aos poucos, o ritmo se torna frenético; a pegada, mais forte – e é assim que ambos se saciam, os olhos molhados, em verdadeiro êxtase.

 

Com as pernas trêmulas, exaurido, Francisco tomba com todo o seu peso por cima da cunhantã, e fica ali por alguns segundos tentando recuperar o fôlego, os músculos e o juízo. Irina vai se virando devagar e encara o parceiro. Segurando o queixo dele, ela o beija na ponta do nariz ainda suado e sai do banheiro.

Ainda em fase de recuperação de suas forças, Francisco caminha pelo corredor rumo à sala de jantar. Atento, vê Janaína se despedindo do delegado e se aproxima.

— Onde está Irina?

— Saiu, foi dar uma volta, a noite está muito quente. Ainda bem que foram todos embora.

O mestre ajeita a gola da camisa, disfarçando o constrangimento, e se surpreende com o gesto inesperado de Janaína. Ela o empurra e ele cai no sofá, assustado e sem ação.

— O senhor me parece ser um homem sério, mas diga: por que anda me observando escondido pelos cantos? É a segunda vez que o flagro me vigiando.

 Nervoso, ele desconversa.

— É tarde e preciso ir.

Sem dar muita importância às consequências, Janaína avança:

— Não precisa ficar sem graça pelo fato de estar a sós com uma mulher casada.

O professor decide se fazer de desentendido. Para sua surpresa, a primeira-dama puxa outro assunto.

— O que o senhor acha do meu marido? Sem ouvir a resposta, revela ao convidado:

— Meu marido, toda vez que se embriaga, diz que é o boto.

— É, já presenciei uma situação parecida outro dia.

Ela, como se quisesse dizer que aquilo não era nem um décimo de toda a história, lança a novidade:

— Isso, caso o senhor não saiba, tem a ver com a mulher do seu caseiro. Agora sim, ela disse algo novo, e muito relevante. Apesar do choque, o mestre reage com naturalidade:

— Com o Messias? O que tem a mulher dele, dona Janaína?

A mulher se contém e não responde.

— Um dia eu conto para o senhor. A noite não está propícia para falarmos de coisas desagradáveis, mas não se preocupe, prometo que conto tudo, se tivermos a oportunidade de ficarmos a sós novamente.

A conversa se estende, mas o assunto é desviado o tempo todo. Depois de ouvir toda a ladainha de Janaína sobre os planos da filha de estudar em Manaus, Francisco consegue livrar-se da cilada do casarão. A lembrança de Irina, daquele corpo jovem completamente entregue à lubricidade, o enleva mais que preocupa. Na volta para casa, contudo, a sensação de bem-estar se rompe quando ele percebe que está sendo seguido. Pensa logo em Gilmar, que anda sabendo demais dos movimentos dele na cidade.

— Quem está aí? É melhor parar com isso. Não vai conseguir me assustar.

Após ter se distanciado o suficiente, dois vultos cobertos pelas sombras das árvores atravessam a rua. O professor tem a confirmação: de fato, estava sendo seguido, mas não pelo boto.

Ora, as mulheres… Sempre sabem de tudo dessas coisas do amor e do sexo. Plantada no portão, Telma recebe o professor cheia de certezas.

— E agora? Ela vai perceber que aconteceu alguma coisa entre mim e Irina. Meu cheiro deve estar forte.

Diminuindo o passo para elaborar alguma saída mágica ou milagrosa, embora sem êxito, Francisco resolve encarar a situação. A vizinha finge interesse pelos acontecimentos:

— Como foi o jantar?

Sem esticar a conversa e suando bastante, Francisco responde:

— Cansativo e chato. Preciso mesmo é de um bom banho e uma cama.

O professor está esquivo, desvia o olhar. Telma dispara, sem rodeios e sem muita sedução:

— O senhor quer companhia?

— Essa noite eu quero dormir muito.

Ela percebe a indisposição física. Afetuosa, e até certo ponto servil, ela insiste:

— Quer qu’eu faça um chazinho de laranja? Um boldo?

Ele muda a estratégia, e se desdobra em agradecimentos inoportunos:

— Obrigado mesmo, você tem me ajudado bastante com as suas

entrevistas. Saiba que…

Ela interrompe rapidamente:

— O que tenho feito qualquer um pode fazer.

Ele retruca:

— Nem todos têm a calma, a sensibilidade, a educação para essa tarefa. Você entra em todas as vilas e é bem recebida. Sabe o que isso significa?

Ele quer entrar. Ela segura no braço dele, de leve, sem força:

— Eu fiquei esperando o senhor porque estava curiosa em saber como se desenrolaram as coisas. Sei muito bem onde o senhor estava, e sei quem é aquela gente, principalmente, as mulheres de lá. Imaginei um monte de coisa, mas, ao mesmo tempo, fiquei feliz pelo senhor poder estar em um lugar desses e se sentir livre pra fazer tudo o que quiser.

Ele olha com ternura.

— Sou sua amiga, não a sua dona, não precisa ficar preocupado com nada, eu não me magoo com essas coisas. O senhor pode ir embora a qualquer hora dessas e não deve ficar se prendendo a ninguém. Aproveite a estada em Xavier para fazer tudo que o senhor não faz em São Paulo.

Sem mais, Telma se retira. Francisco ainda se estica para vê-la sumir na escuridão. Reconhece: está aliviado.

Em casa, acende a lamparina e, antes de ir para a cama lê alguns dos papéis nos quais fizera anotações. Perde a concentração ao sentir o cheiro da pele de Irina, o gosto do sexo. Excitado, até pensa em chamar Telma, mas recua. Seria uma indignidade.

No quarto, entretido com tantas ponderações, Francisco abre as janelas e acaba sendo acometido de um forte calafrio. O coração acelera quando detecta um brilho excessivo vindo da janela, e ele se dá conta de que não está sozinho. Gilmar aparece agachado, iluminado pela luz da lua.

— O que você quer? Isso já está ficando muito abusivo da sua parte.

O boto olha com cinismo, com um ar de intimidade, extremamente audacioso:

— Deixe de ser malcriado. O senhor é um homem fino, de bons tratos e tem bom gosto para mulheres. Não vai me contar como foi?

O mestre, irritado com a presença do boto, quer saber:

— Como foi o quê?

O boto curioso, porém bem informado, cutuca o professor, obrigando-o a falar sobre o assunto da noite.

— Foi a filha, não foi? E aposto que foi no banheiro. Fez como eu mandei e deu certo, não deu?

O boto vai bombardeando a mente do professor com uma enxurrada de perguntas, e obriga o mestre a responder, meio atordoado, numa tentativa de abreviar a visita.

Encarando Gilmar com um olhar de ódio, o professor confessa:

— Deu, deu certo, sim. Era isso o que você queria ouvir, pois foi isso: eu fiz do jeito que você disse, peguei-a para valer.

Gilmar olha para o luar.  Nesse momento, o mestre fita o boto, sentindo-se muito intrigado, com arrepios que lhe cortam todo o corpo.

— Como você sabe?

Gilmar desconversa:

— O quê?

O mestre insiste:

— Como você sabe que foi no banheiro? Eu não disse que foi lá. Você me seguiu, era você me seguindo na saída da casa, você veio me assustando de lá até aqui?

— Não era eu, não preciso seguir o senhor. Sei de tudo; o senhor sabe há quantas luas eu rondo por essas bandas? Eu sei muito mais do que o senhor imagina. Agora me conte: e a mãe?

Francisco fala aos brados, em tom de surto:

— Não me atormente mais! Por hoje chega. Aliás, a tua ajuda não está me servindo de nada. Esperava que me contasse como funciona a coisa, mas você só me atormenta!

Aproximando-se mais, o boto sussurra.

— Está enganado, professor. Essas coisas de sexo, amor, raiva, não conseguimos passar através de palavras; é preciso sentir na pele. Não existe muita diferença com o passar do tempo.

Paralisado, Francisco ouve com bastante atenção.

— Desde o dia em que salvei a sua vida, o senhor já se realizou com duas mulheres. O senhor viu a morte de perto e eu lhe dei a segunda chance. Poucos têm essa oportunidade. O senhor compreende?

Pela primeira vez, Francisco concorda com Gilmar. Sabe que, nesses dias que antecederam o jantar, viveu uma revolução por segundo no seu mundo frágil e sombrio, onde reinam a culpa, a vergonha e o pecado, em detrimento da própria natureza gritando mais alto ao redor. Nos últimos dias, o mestre mergulhou em um universo extraordinário, de cuja existência ele jamais havia sequer suspeitado.

Gilmar se despede.

— Durma bem, a noite está linda. Quem sabe amanhã de manhã o senhor não tenha mais notícias minhas.

Francisco pergunta:

— Aonde você vai?

— Não preciso dizer. O senhor já se divertiu muito por hoje, também tenho esse direito.

O conquistador das águas salta para o quintal com a força de dez gorilas, desaparecendo rapidamente nos caminhos escurecidos pelas sombras das árvores caindo na noitada sem fim e eterna para este ser, enviado pela magia da região para atormentar a vida pacata de um homem puritano e urbano.

 

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