O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XIX. Provocações necessárias

Na frente da casa, Messias revira a terra do jardim, observado pelo professor. Cavando aqui e ali, eles seguem falando.

— Isso é capim-santo. Mas isso aqui é mato…

O caseiro explica:

— Não serve pra nada, apenas pra sujar a paisagem.

O ronco do motor do único automóvel de Xavier anuncia a chegada do patrão, acompanhado da mulher, Janaína, e da filha, Irina. A rua é reta e cheia de buracos, o que faz parecer impossível o tráfego de um veículo. Depois de algumas manobras, Lindemberg estaciona o veículo na frente da casa. Todos desembarcam.

Percebendo a presença de Irina, o professor lembra das provocações entre a mesa e o fogão da cozinha. Disfarça, desvia o olhar para a mãe. Na mesma hora, vem à sua mente o tal Jonas, no bar do Miro, com a carteira de Abreu na mão, imagem que reacende a suspeita: terão sido Janaína e o amante filho de boto os assassinos de Abreu e Amelinha? O professor olha assustado para Lindemberg, pensando no casal assassinado nos limites das terras dele.

— O que será que querem?

O mestre não hesita, vai até os visitantes com educação e, acima de tudo, tomando muito cuidado com as palavras:

— Mas que surpresa. Entrem, por favor.

Messias corre para abrir o portão. O patrão entra na frente, saudando o paulistano com o jeito caboclo de ser:

— Tá na hora da gente comer uma tartarugada lá em casa, professor.

O mestre não compreende. Percebeu, no entanto, que se tratava de um convite:

— Sejam bem-vindos.

O professor é extremamente receptivo. Irina se antecipa:

— Meu pai veio convidá-lo para um jantar em família, um jantar de boas-vindas. Já faz um mês ou mais que o senhor chegou e ainda não fizemos nada, mas não repare, meu pai é assim mesmo, tem uma cabeça…

O mestre quase completa a frase de Irina. Fica nítido o pensamento maldoso sobre a conduta da esposa do patrão.

— Que maravilha. E quando será?

— Amanhã à noite!

Janaína toma a palavra.

— Meu marido trouxe do sítio duas tartarugas grandes e gostaria muito mesmo que o senhor fosse lá comer com a gente.

Francisco agradece. Sabe que ainda terá tempo de formular uma boa desculpa para não ir. Eles se entreolham e nada dizem por uns segundos.

— Então está marcado, amanhã à noite. Não se atrase, estaremos ansiosas, desculpe, meu amor, “ansiosos” pela a sua companhia – diz Janaína, com ar de primeira-dama e esposa exemplar.

Lindemberg estende a mão e se retira, sem esperar pelas mulheres. Elas não têm muita pressa. Conversam mais um pouco a ponto de deixar o professor desconcertado. As duas param de falar e se despedem com beijinhos. A filha sai olhando para trás e dá uma piscadinha. Messias olha e diz, sem perder tempo:

— Essa cunhantã dá nó em pingo d’água, é um perigo.

O mestre concorda. Ele e o caseiro trocam opiniões a respeito de Irina.

— Você é um homem sábio, Messias!

Os dois ficam olhando o patrão fazer as manobras do veículo, partindo pelo mesmo caminho que veio.

Após essa visita-relâmpago, o mestre dá continuidade ao trabalho de pesquisa. Despede-se de Messias e, sentado à sombra da árvore no quintal, de frente para o rio, muito mais cheio que no dia anterior, escreve algumas linhas.

As coisas sobrenaturais são muito bem assimiladas pela população de Xavier, e o professor já está íntimo desse universo. O convívio o deixa mais livre para escrever sobre certos assuntos ligados aos mitos.

Solitário em meio aos seus papéis, e absorto num mundo que é só dele, Francisco sente os pelos ouriçarem e a espinha gelar. Olha para o rio, vira lentamente a cabeça para trás e vê a sombra de Gilmar, sobre um tronco.

O boto sabe que, desse local, não pode ser visto por mais ninguém. O professor se levanta e exclama:

— O que você está fazendo aqui?

Gilmar fica espantado com a ríspida preocupação do anfitrião:

— Calma, não vão me ver. Estou escondido, continue fazendo suas lições de casa. Vamos conversar um pouco.

De propósito, o boto desvia o olhar para a casa da vizinha. Francisco se aborrece.

— Perdeu alguma coisa por ali?

O mestre chega bem perto de Gilmar que, covardemente, vai se afastando.

— Calma, pode ficar sossegado.

Ajeita o paletó. O semblante muda, fica mais humano que animal por um instante. O boto afeta o humor do mestre. Gilmar prossegue:

— Vai ter o jantar. O prato principal será o senhor.

O mestre se segura para não avançar no nojento, que insiste no discurso de maníaco ou demoníaco.

— Faça o que elas querem, mas não faça como fez com a Telma. Seja macho, homem de verdade.

O professor, corajosamente, solta uma frase ferina:

— O senhor está longe de ser um homem, muito menos de verdade. Agindo assim, não passa de um animal selvagem no corpo de um ser humano cometendo atrocidades em nome do prazer imediato e que deve ter muito o que explicar sobre esses assassinatos.

O boto encara mais uma vez o mestre:

— O senhor está certo, só não se esqueça de uma coisa: eu tenho a sabedoria, eu sei de tudo. E se o senhor não sabe, fique sabendo: um homem nunca faz aquilo que a mulher precisa, faz apenas o que ela quer, entendeu?

Gilmar se diverte. Ao ouvir esse discurso, Francisco lembra de Clara. De nunca ter feito o que ela queria, realmente, no jogo do amor. Ergue a cabeça e percebe que o boto está partindo sem se despedir.

Inquieto, Francisco volta para casa e encontra Telma no banheiro dele. Pensa no quanto desejou ter essa mulher nua na sua frente. Com o corpo em chamas, passa a entender a natureza das coisas.

Uma mulher linda, exótica, na casa dele, no chuveiro e de porta aberta. Na mesa estão as anotações do dia que Telma preparou sobre os ataques do boto.

Tomado por um impulso arrebatador, o professor entra de roupa e tudo no banho com a vizinha. Seus medos e bloqueios deixam de existir neste fim de tarde amazônico. Ensaboada e molhada, Telma nem acredita na audácia. Eles se beijam e o mestre começa a tocá-la com voracidade. Telma o acalma. Diz para ele sentir o toque sem pressa. Ele relaxa e envolve a mulher desejada com carícias nunca testadas antes em corpo nenhum.

O fogo dos corpos a faz estremecer a pele. Barreiras desabam, correntes se rompem, fragmentadas. Os dois se incendeiam debaixo do chuveiro. O casal se funde num ritmo acelerado, de movimentos intensos, até desabar – água, espuma e fluidos deslizam das entranhas ardentes.

Por alguns minutos, os amantes ficam sentindo a água bater e resfriar suas partes mais aquecidas até recobrarem as forças. O sorriso espelhado é de satisfação. Certos de que a felicidade existe, os dois voltam a se beijar.

Os acontecimentos em Xavier se desenrolam com muita rapidez. Talvez, uma tamanha intensidade de transformações possa ser atribuída à própria paisagem da floresta, que sofre alterações constantes.

A subida do rio provoca essa sensação, e todos os dias são como se Tupã pintasse um quadro novo. É menos uma árvore e menos um barranco por dia na época da cheia. Na vazante, uma praia nova surge a cada semana. A Amazônia tem dessas coisas.

Francisco concentra-se exclusivamente nos seus contos e crônicas. O dia está quente, como todos os outros, abafado, de vento parado. Parece presságio de doença, de praga. Nada de Gilmar e nada de Telma.

O mestre vai para o quintal, e fica sabendo, por Messias, que o boto não deu as caras. O caseiro limpou o quintal e se prepara para colocar água no fogo, para cozinhar. Diz que Telma saiu para caçar.

— Hoje vamos comer uma caça. Ela se ofereceu pra ir. Não se preocupe, ela é boa nisso, atira bem e tem muita sorte.

O professor já prepara o espírito para o jantar. Decide caminhar por uma trilha à ilharga do rio. Aos poucos ouve o som de barcos passando longe dali. A praia, onde desemboca a trilha, é pequena, exótica, com um ar de peculiaridade.

Após alguns passos, o mestre encontra umas roupas atrás das dunas, ouve barulho. Algumas pessoas estão tomando banho no rio. Três homens, com a metade do corpo dentro d’água, nus, cercados por uma rede de pesca, seguram com força um animal. Posicionando-se nas pedras, Francisco vê que se trata de um cerco a um boto-fêmea, chamada de bota.

Outros botos, machos, ficam agitados fora das redes. Os homens usam facões para tentar ferir e conter o animal que se debate nas águas. Assustado, o professor acompanha. Francisco escreveu sobre esse assunto em uma de suas anotações. Sabe que, ao final, haverá uma mutilação e um abate. Pela primeira vez na vida estava diante de um ato criminoso, que exigia uma atitude.

— Estes homens, porém, sempre usam armas.

Pensa em como irá interceder e ouve:

— Vai, agora tá no jeito, vai…

 

Ele se desespera, precisa fazer qualquer coisa. Sente necessidade de retribuir o favor que um boto lhe prestou no dia do acidente. Pegando uma pedra na mão direita, salta para a beira do rio, aos berros, tentando parecer um pouco ameaçador. Os três homens se olham, no início um pouco assustados, pois esse tipo de flagrante é complicado. Mas logo se recompõem.

O mestre sente que está em perigo. Os homens saem da água com um pouco de dificuldade e, assim que chegam na areia, partem para cima de Francisco. Ele sai dali para não apanhar ou ser morto, perseguido pelos três. Na fuga, tropeça e se arrebenta no chão. Fica na mira dos agressores, que só param por causa do estampido. Um tiro. Na mata, Telma disparou para espantar um gato maracajá que cercava sua caça e sem querer evitou o massacre do professor. Aproximou-se da balbúrdia e, vendo a cena, apontou a espingarda para os pescadores e os forçou a desaparecer às carreiras.

A salvo, Francisco pergunta de onde a mulher saiu assim tão maravilhosamente preparada. Que precisão e que sincronia! Ainda aturdido, ele revela o que presenciou.

— Como homens adultos conseguem fazer isso com esses mamíferos das águas?

Telma explica que essas coisas acontecem em muitos lugares.

A permissividade distorcida leva o professor a pensar em uma outra teoria, uma analogia entre o homem e a mulher, o boto e a bota. Em seguida, ele e Telma vão soltar a bota que continua presa nas redes. Entram na água com cuidado, para não assustar ainda mais a fêmea capturada. Com carinho e cuidado, o casal vai tirando a rede das nadadeiras, e espera pela conclusão do salvamento. Aos poucos, a presa se movimenta.

O professor nem se deu conta do trauma e relaxa ao lado da vizinha nas águas claras do rio. Francisco sente-se mais humano e usufrui a sensação de missão cumprida.

Não teve caça no almoço. Depois de comerem um feijão com farinha e vários jaraquis comprados de um pescador, Francisco se recolheu para descansar. Telma se prestou a narrar a aventura do dia a Messias.

À noite, refeito, o professor decide participar do jantar com o patrão e família. Na saída, Telma lhe deseja sorte. Sabe o que ele vai ter de enfrentar naquela casa.

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