O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XVIII. Eu sou o boto

O rio bem mais cheio altera a rotina de Xavier. Em verdade, interfere na vida. Depois de todo o acontecido, Francisco vê as coisas sob um outro enfoque e refaz suas anotações. Sem lógica, ele reconhece, troca a imparcialidade no tom da narrativa por uma certa empatia com os mitos. Descarta a frieza e adiciona respeito e gratidão. Não sabe mais se deve ou não acreditar. Afunda em terreno movediço, como as áreas inabitadas que acercam Xavier.

Telma, quase diariamente, relata notícias dos vilarejos. Novos boatos de ataques surgem. Francisco escreve como nunca – crônicas, contos, análises profundas das crendices do povo.

Nos momentos de pausa, o professor senta na varanda para apreciar a vista. Atordoado, entre incrédulo e místico, Francisco acostumou-se a uma exibição matinal antes inconcebível, face às suas rígidas convicções, como se buscasse harmonia com a natureza. Nas águas próximas, o boto faz suas visitas diárias. Achega-se para comer os peixes na enseada, na hora do café.

Contemplativo, numa das manhãs ensolaradas, Francisco desce a rampa barrenta até uma moita ao pé de acolhedora árvore, cantinho perfeito para leituras e divagações. Aprecia a vista, usufrui da sombra, do vento e da tranquilidade. Lê uns parágrafos a respeito da lenda do boto e esquece o mundo ao redor.

De repente, sente calafrio. O vento se assanha com uma corrente gélida, um frio familiar, típico das regiões sudeste e sul. Uma vibração esquisita tira a concentração do professor, logo surpreendido pela presença de um rapaz bem vestido, elegante em roupas brancas e chapéu, que lhe estende a mão.

— Boa tarde.

Assustado, Francisco mal consegue se mexer.

— Meu nome é Gilmar, me desculpe o jeito, mas é que… bem, é qu´eu tô sabendo que o senhor é um estudioso…

O mestre procura relaxar, a tensão à flor da pele. Os dois se olham por alguns segundos.

— Desculpe-me, mas não sei o que o senhor está fazendo aqui na minha propriedade. Por onde o senhor entrou?

O rapaz se surpreende com a recepção do pesquisador, que continua a inquisição:

— Como o senhor entrou aqui?

Gilmar, delicadamente, explica:

— Sinto muito. Não queria ser ofensivo. Não quero causar nenhum inconveniente, somos hospitaleiros.

O visitante fala com tranquilidade, poder e segurança.

— Eu sei quem é o senhor. Sei tudo sobre o trabalho sobre a lenda do boto.

Francisco solta um comentário grosseiro:

— Não existem segredos em uma vila como essa. Não é novidade para ninguém o que eu faço aqui. E eu moro aqui, isso já é o suficiente para você ter de sair. O senhor não foi convidado.

— Não precisa ser desconfiado, não vim até aqui para incomodá-lo nem para lhe ferir, sou um…

— Invasor intrometido?

O professor responde com malcriação, interrompendo o rapaz, que se adianta:

— Eu vim até aqui porque sei quem está fazendo essas coisas, o senhor entende? Posso ajudar a resolver esse mistério. Mas a sua disputada atenção está sendo muito difícil de conquistar.

O tom muda. Intrigado, o professor resolve dedicar alguns segundos de atenção à conversa.

— Está se referindo ao ocorrido na vila.

Seus pensamentos se mesclam e sua expressão se modifica, aos poucos, ativada pela curiosidade. Presta mais atenção. Gilmar atiça:

— O responsável sou eu. Espero que o senhor me deixe explicar.

Excitado com a revelação, aturdido por um misto de medo, desconfiança e “incredolice”, como dizem os caboclos, o professor empalidece com a possibilidade de estar diante de um maníaco depravado e cruel.

— Eu matei aqueles vermes, acredite ou não.

Francisco procura raciocinar, espantado:

— Por que fez essas coisas, se é que foi você mesmo? Foi violento e covarde.

O rapaz olha para o mestre e responde com naturalidade:

— Às vezes, as coisas saem do controle, não faço por mal. Apenas não tenho tantos filhos assim para me culparem de tudo…. Chega.

Francisco percebe o tom irônico e se descontrola. Segura o intruso pelo paletó, com determinação e firmeza. Gilmar não reage. Ouve com serenidade.

— O que pensa que está fazendo, hein?

Francisco espera alguma resposta para tomar uma atitude ainda mais enérgica. Gilmar, calmo, quase singelo, revela:

— Eu sou um boto. 

Francisco responde com agressividade, exprime um ar ameaçador, mas desmorona, assombrado, quando o visitante tira o chapéu e humildemente, como em reverência, mostra o furo na cabeça, que todo “homem boto” tem.

 

O professor larga o rapaz, dá um passo para trás e cai. No esforço para se levantar, avalia a situação surreal, bizarra, o crânio furado, o chapéu, o paletó, o boto, as mortes, alucinação. 

O boto estende a mão para ajudar. Francisco respira profundamente e sobe com as próprias pernas. Ouve:

— Como já disse, eu sou um boto. Não precisa me agradecer por ter salvado a vida do senhor no rio, no dia da tempestade, lembra?

Antes de responder que não, o mestre começa a lembrar do dia do acidente com a canoa. Entra em uma espécie de transe, como se o mito pudesse interferir nos seus pensamentos. Novamente, não consegue se mexer. A memória recupera detalhes do naufrágio, do quase afogamento: “…já sem forças para lutar, despede-se da vida, a única imagem capturada pelos olhos afogados são as bolhas de ar formadas pela água, uma forte pressão o leva à tona e o faz respirar, surge um boto, que o leva para a beira”. Sai da paralisia ao ouvir as palavras de Gilmar:

— Salvar a vida das pessoas que estão se afogando e “fazer mal” às mulheres são parte da natureza dos botos. Mas esses cretinos abusaram da minha boa vontade.

Francisco perde os fios que o ligam à razão. Gilmar prossegue:

— Salvei o senhor de vários perigos, inclusive de uma onça, não lembra?

Francisco se recusa a creditar, nega com a cabeça cheia e um sorriso desconfiado.

— Já lhe disse, sou um boto diferente, sou tucuxi para salvar as pessoas, mas adoro ser um pirajoara para cobrar os homens.

Agora as palavras surtem efeito e o antropólogo se interessa pelo assunto:

— Cobrar os homens?

O boto, percebendo a fragilidade do professor, pronuncia suas palavras perto dos ouvidos do mestre:

— Eu sou o boto cobrador. Exerço várias funções dentro deste reino amazônico. Não sou o mesmo boto das lendas. Isso o senhor irá descobrir com o tempo.

Francisco rumina o que acabou de ingerir à força e indaga:

— Com o tempo?

Calor, vento, inquietações, revolta. Com a visão turva, Francisco espera a reposta, mas o boto cobrador sumira. O professor observa ao redor. Nada. Senta-se, recomeça a leitura, cujo teor percebe que não conseguirá mais apreender. Lentamente vai percebendo a experiência vivenciada. Ficou frente a frente com um boto de verdade e nada fez. Nada perguntou. Nenhuma informação foi retirada daquele ser. Sente uma emoção diferente, como a de uma criança que acabou de ver o Papai Noel. É ou não verdade?

Enquanto estabiliza as emoções, Francisco mira o rio e contempla o nado solitário de um boto, em forma animal, a poucos metros, que entra e sai da água, em voos e mergulhos, como numa dança, e some.

Confuso diante de fatos e pessoas tão estranhas, Francisco se esforça para raciocinar friamente. O pensamento se perde, como se possuído por alguma força sobrenatural, mágica. As entidades das florestas deram-lhe as chaves das respostas sobre os mistérios da vida amazônica, mas a covardia e o medo o impediram de aceitar a missão da descoberta. Os sinais podem ter se perdido para sempre. Frustrado, ele procura uma resposta, o conforto emocional e espiritual que o conduza à compreensão do fato ocorrido na beira do rio.

 

Resolve sair de casa e logo lhe vem à mente a figura de dona Diva, a mãe do filho do boto. Se existe alguém para partilhar esse momento, é essa senhora.  Vai atrás da mulher, mas decide não falar a ninguém sobre o encontro com o boto. Em frente à casa de Diva, observa de longe, sozinho. A senhora está no quintal, à beira de um frigideirão, com muita lenha por baixo. Com um remo de canoa, espalha a macaxeira ralada de um lado para o outro, reproduzindo a tradição indígena de produção da farinha.

Aproximando-se da cerca, dona Diva percebe a presença do professor e o encara. O mestre se apresenta:

— Dona Diva, meu nome é Francisco e gostaria de falar com a senhora. É muito importante para mim.

— O senhor não é aquele professor? Entre, entre… Não posso sair daqui, senão queima a farinha todinha. Pode chegar mais perto.

Enquanto joga a macaxeira para lá e para cá, Diva conversa sem parar. Intuitivamente, ela sabe o que levou o mestre até a casa dela.

— Essa história do Jonas ser filho de boto é pura imaginação das pessoas. Vou contar pro senhor, mas não pode dizer nada pra ninguém.

E, então, confidencia:

— O pai dele é um espanhol, bonitão, casado, que apareceu por essas bandas. Apaixonei de cara. Eu sabia que ele nunca mais voltaria aqui, mas eu o quis assim mesmo.

Com a determinação de uma guerreira da tribo das amazonas de Xavier, Diva abre o coração e assume a “fraqueza” quanto ao desejo do sexo proibido.

Francisco ouve todo o relato.

— Ele tinha um cabelo loiro e encaracolado, os olhos verdes que nem o lago do Tucumã. Essa história de boto, como o senhor já deve saber, é pura conversa. O meu filho é safado que nem o pai, mas não é boto.

— Dona Diva, por acaso, o Jonas sabe quem é o pai dele?

O mestre deseja saber de tudo. Diva responde com muita simplicidade:

— Sabe, mas prefere acreditar que é mesmo filho de um boto a acreditar que é filho de um espanhol que “usou” a mãe dele.

Meio atordoado, Francisco interrompe:

— Já entendi, dona Diva, obrigado pela riqueza de detalhes. A senhora ajudou muito.

Como que por instinto, o professor olha para trás e confere Jonas chegando de cara fechada. Em tom autoritário, o rapaz pergunta para mãe:

— O que esse cara quer aqui?

Diva não se abala. Demonstrando mais autoridade ainda, responde:

— Eu o mandei chamar.

— O que a senhora contou pra ele?

— A verdade. Contei que essa história de boto é pura imaginação das pessoas. Contei quem é teu pai verdadeiro.

Ao ouvir a última frase da mãe, Jonas fecha mais ainda a expressão facial. A amargura toma conta de todo seu ser, a saliva engrossa, a boca azeda na hora.

— Se já ouviu tudo o que tinha pra ouvir, espoca logo daqui!

Jonas grita e vira as costas, no rumo da casa. Diva reage aos berros, com palavrões dirigidos ao filho. Francisco permanece estático. O professor fica com medo. Lembra muito bem da carteira de Abreu que ele usava dias depois de o homem ter sido assassinado.

Diva termina de torrar a farinha, junta o produto no remo e coloca em um recipiente grande. Procura estabilizar as suas emoções:

— Desculpe-me, não queria perder o controle. Nessa vida a gente colhe o que planta. Esse rapaz é a minha cruz. Tudo tem um preço, mas acho qu’eu pago alto demais por um deslize. Posso dizer com toda a franqueza que não valeu a pena. Esse é um peso que não vou conseguir sustentar por muito tempo.

Educadamente, o mestre, já sem jeito, pede para se retirar. Diva o acompanha até o portão. Ele segura a mão dela e a beija, como se reverenciasse a velha senhora.

Jonas observa pela janela do quarto. Com raiva, atira a caneca de café na parede. Diva abre a porta e encara o filho. Ele desafia a mãe mais uma vez com seu olhar raivoso:

— Qualquer dia desses a polícia vai bater aqui atrás de ti. É isso que acontece com gente que não faz nada, que só procura confusão.

Em casa, Francisco vai para o quarto descansar um pouco. Diva não espalhou apenas a farinha no tacho, na beira do fogo. Provocou um verdadeiro terremoto na cabeça do professor.

Olhando para o teto, deitado na cama, o mestre relembra as palavras de Gilmar: “Eu ataquei as mulheres. Acredite ou não. Às vezes, as coisas saem do controle, não faço por mal”.

Olhando fixamente para a porta do quarto, outra frase lhe vem à mente: “Eu sou um boto. É por isso que fiz e faço coisas desse tipo, faz parte da minha natureza”.

Delirando, vê na porta do quarto uma projeção do boto mostrando o furo na cabeça. As palavras ecoam na cabeça do professor: “Tanto salvar a vida das pessoas que se afogam quanto fazer mal às mulheres são parte da natureza dos botos”.

Francisco murmura:

— Estou ficando maluco.

Anoitece em Xavier. Transtornado, com ideia fixa, angustiado, o professor cai num sono pesado e afunda em mais um ciclo de vida onírica, em que sonhos se transformam em pesadelos, inferno e paraíso se fundem, Telma, Clara, a selva, passado, presente, realidade e encantamento.

As águas continuam a subir num ritmo nunca visto antes em Xavier. O calor está insuportável. Fica impossível permanecer na cama, à luz do dia. A noite horrível deixou moído o corpo de Francisco. Praticamente se arrastando, ele chega à cozinha, onde Telma havia deixado café pronto. O professor bebe sem vontade, enjoado.

Messias aparece e diz que Telma passou por lá antes de embarcar para a vila do Cupuaçu. Houve outro ataque de boto.

— Ela veio bem de manhãzinha, saiu daqui às pressas.

Em pé, na porta da cozinha, o professor analisa Messias, um homem simples e cativante. Francisco sai da casa até o barraco onde mora o caseiro, nos fundos. Lá, o professor olha, pela primeira vez, os pertences do mateiro, e vê que ele possui uma arma. Está pendurada na parede. É a tal “papo amarelo”. Uma winchester 44, bastante usada pelos caçadores da região.

 

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