O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XVII. Gato escaldado

Os dias que correm na floresta são sempre iguais.  Menos por uma coisa: a subida das águas. Telma anda esquiva, sumida. O professor, absorto no mundo de descobertas recentes, nem toma conhecimento dos episódios estranhos ocorridos nos vilarejos da redondeza.

Batem à porta, um grupo. À frente, um homem fala que sabe de coisas relacionadas ao boto, ataques e investidas contra homens e mulheres. O tumulto repentino provoca aglomeração e aumenta a confusão.

Telma aparece para ver o motivo de tanto barulho. As pessoas misturam vozes e a deixam muito assustada. Havia tempos que não ouvia falar de algo assim na região.

— Vocês têm certeza disso?

Telma, cercada pelas mulheres alvoroçadas, aborda o delegado. Jaílson responde sem rodeios. 

— Parece que é verdade. Foram mais de dois ataques.

O professor aparece na porta da casa e nota a presença daquela gente apreensiva, com sinais de medo e pânico.

— O que está acontecendo aqui?

Francisco olha para Telma. Contudo, dessa vez, a vizinha assume uma postura diferente, inamistosa, e se dirige, de forma esnobe, na direção daquele com quem se deitou:

— Foi um boto. Um boto!

Estranho àquela realidade, o professor ignora a gravidade da situação.

— O quê? Como assim, um boto? O que tem um boto a ver com isso?

Menos antipática, Telma explica:

— Essas pessoas vieram falar com o senhor, estão dizendo que um boto atacou no vilarejo. Já foram dois ataques.

Francisco ouviu, mas não compreendeu em que medida tal fato se relacionaria com ele.

— E o que elas querem de mim?

Jaílson se aproxima:

— Vou precisar da ajuda do senhor.

Telma se surpreende com a atitude do delegado. Humildade nunca foi o ponto forte da personalidade de Jaílson.

O professor se mostra solícito, mas intimamente teme o envolvimento com aquele universo de mitos, lendas e imaginação. Ainda mais se há fanatismo e violência.

— Mas, em que eu poderia ajudar?

Jaílson expõe a ideia:

— O senhor pode ajudar muito. O senhor é um estudioso da lenda. As pessoas sabem disso e não o veem como uma ameaça pública. Assim podemos saber se esse cabra é um boto ou um bandido que está se aproveitando da lenda – diz, olhando friamente para o mestre.

— Farei o que estiver ao meu alcance para colaborar com o senhor e com o povo deste lugar.

A vizinha vai dar a notícia. Logo as mulheres rodeiam o professor, em alvoroço. Elas o benzem e o beijam na testa. Francisco fica incomodado e só relaxa ao se ver na mira do olhar meigo de Telma.

Francisco exibe entusiasmo com a perspectiva de investigar os ataques do boto. No cais, porém, levado para uma primeira incursão pelo rio, para diante da canoa, com sinais visíveis de um estado de choque, sequela do acidente que sofrera. O corpo pesa e um arrepio lhe desce da cabeça aos pés, num vaivém contínuo e desesperador

— O senhor está bem?

Telma se preocupa. O canoeiro continua à espera do embarque. Jaílson se aproxima dos dois:

— O que está havendo? O que ele tem?

Ela responde, quase sussurrando:

— Ele tá tremendo de medo. Acho que não vai conseguir entrar nessa canoa.

Jaílson se irrita:

— E o que vamos fazer?

O trauma gera uma assustadora tremedeira no professor, cuja fobia de água recrudesce. Nada mais o fará sair de Xavier por vias fluviais. Avião custa caro, não há pista de pouso nos vilarejos do delta amazônico, e quando alguém se atreve a sobrevoar nesse quadrante sente muita instabilidade, e as bússolas da aeronave ficam desnorteadas.

O pesquisador admite que que o trabalho estará prejudicado, mas terá de se conformar apenas com os relatos. Ele precisa se curar, até mesmo para voltar um dia para Manaus.

— Vamos sair daqui, vamos.

Segurando-o pelo braço, Telma o leva para terra firme, e os dois caminham por alguns metros. Apaixonada, ela sugere com humildade uma solução para o problema.

— Eu vou no lugar dele e anoto tudo, depois transmito as informações.

O delegado aceita.

Recuperado, e já na praça da cidade, Francisco experimenta o alívio de tirar uma carga dos ombros. Vai para casa, levado pela vizinha, que o observa bem de perto e com muita preocupação.

Jaílson pede à cabocla que volte, insinuando que precisa lhe dizer algo importante. Ela vai até ele:

— Gato escaldado tem medo de água fria. Quero só ver como vai ser daqui pra frente.

Telma fecha a cara. Ela volta a pensar que o delegado não passa de um idiota.

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