O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XIV. Um sobrevivente

Telma conversa com a vizinha e sente que a tempestade está passando bem perto. Apesar dos gritos do vento, ouve a pergunta:

— E o professor?

— Esse homem é diferente dos outros. Ele tá mais interessado no trabalho dele que outra coisa. Acho que ele não quer se envolver com ninguém.

A vizinha nota os olhos tristes de Telma:

— Se ele ti quisesse tu ia com ele, num ia?

— Até pra guerra! Onde ele deixasse qu’eu fosse.

O vento e a poeira fazem as duas fecharem os olhos. Telma sente uma dor muito forte no peito, quando lhe vem à mente a imagem de Francisco. Sem entender aquela estranha premonição, ela se segura na cerca, e exclama:

— Nossa, mana, me deu uma coisa aqui no meu peito. Parece aviso.

Telma nem se despede e vai caminhando, sentindo-se mal na direção da casa de Francisco.

A vizinha dela observa e desdenha:

— Essa daí tá apaixonada e nem sabe. Ninguém me engana. Não vai demorar muito pra pegar uma barriga desse daí.

Anoiteceu mais cedo em razão da tempestade que agora afinou um pouco. Messias, que estava no boteco do Miro, aparece pelo terreno. Telma, aflita, na janela, percebe a presença do amigo e vai logo perguntando por Francisco, mas o caseiro não tem a resposta. Depois de uma rápida vistoria na casa, os dois vão até a beira do rio. Percebem que alguém pegou a canoa; a corrente está caída no chão, junto ao tronco com o cadeado aberto. Só pode ter sido o mestre.

Com aperto no coração, Telma fica à beira de perder os sentidos, tonta. Não sente a ligação que tinha com o professor, e lembra de ter experimentado a mesma sensação quando perdeu o marido, assassinado num bar de Xavier.

A evocação dessa recordação nefasta faz com que a cabocla comece a chorar. Desesperada, ela pede socorro:

— Meu Deus! Não pode ser! Messias, me ajuda! Eu tô sentindo que ele pode ter morrido.

Messias não sabe o que fazer, mas tenta acalmá-la.

— Nós vamos encontrá-lo, Telma.

Ele consegue levá-la até a varanda, onde ambos se protegem da chuva agora fininha, sentados na cadeira com vista para o rio. Telma adormece, enquanto Messias observa o cenário, e reza para que o professor apareça vivo.

No outro dia, na delegacia, Telma e Messias conversam com o delegado Jaílson. A preocupação e o desespero só aumentam. Messias andou pelos barrancos da redondeza, na tentativa de encontrar algum resquício ou pista da canoa desaparecida. É muito difícil encontrar indícios nas águas. A corrente leva tudo para o fundo e para longe.

Jaílson não sente a menor vontade de procurar pelo forasteiro. A incerteza e a apreensão vão deixando o clima cada vez pior. A porta se abre bruscamente. É Oliveira, assustado. Ele diz que um pescador no balcão, um tal Olegário, tem informações sobre o desaparecido.

O ribeirinho confessa que se sente culpado por ter deixado o professor sair daquele barranco sozinho na canoa. Agora oferece ajuda e está disposto a levá-los ao local exato onde viu o professor pela última vez, antes da tormenta tropical.

Na beira de um barranco, Francisco está do jeito que Telma havia previsto: ensopado, sujo e em completo estado de choque. De pé e curvado pra frente, olha estático para o rio. O professor percebe a aproximação de um pequeno barco regional, mas não reage, até porque não lembra que está perdido ou que naufragou. Não sabe quem ele é nem o que está fazendo ali.

Messias, Olegário e o comandante estão na cabine da embarcação que se aproxima do náufrago. Telma e o delegado estão na proa e Jaílson nota que os olhos da mulher se enchem de lágrimas mais uma vez, por ver o mestre com vida. O delegado não consegue disfarçar sua frustração de ter de transportá-lo respirando, e não num saco preto.

O comandante encosta o motor. Ninguém sabe como Francisco passou tantas horas na mata, sem alimento e sem qualquer noção de como sobreviver em condições tão adversas. Ninguém faz ideia de como ele conseguiu escapar das tais forças aquáticas, implacáveis na arte de levar tudo para o fundo.

Telma corre para abraçá-lo, mas o mestre permanece imóvel por algum tempo, até ser conduzido para dentro da embarcação. Tudo está muito confuso na mente de Francisco, um terror que marcará, para sempre, sua história.

O pequeno barco se desloca. A aceleração levanta muita lama preta embaixo da popa, envolvendo o barco. Enrolado em uma coberta, o homem resgatado começa a voltar à realidade, gradativamente. Atônito, indaga a razão da sua presença ali, no barco, enquanto que, aos poucos, percebe o ambiente ao seu redor, e vai retomando a sua tonalidade de pele. Apesar do trauma, o mestre consegue se sentir um pouco melhor, o sol aquecendo o corpo gélido.

Em meio à visão de jaçanãs na beira de um charco, como se estivesse assistindo a um filme, o professor repassa as imagens do acidente.

 “A canoa começa a encher d’água e ele percebe a correnteza ficando mais forte. Esforça-se para aproximar-se da margem, chegar na beira, mas, a cada remada, a canoa enche mais e afunda. Luta contra as águas agitadas, que o afastam dos troncos e raízes. Mais alguns segundos e tudo estará perdido, acabado no fundo do rio.”

O professor arregala os olhos; está revivendo tudo novamente, toda aquela agonia.

“Nesse momento de desespero, já sem forças, despede-se da vida. Única imagem capturada pelos olhos afogados são as bolhas de ar formadas pela água debatida por ele”.

Lembra do resto do acidente em fragmentos, como se fossem recortes de jornal mergulhados no lodo da morte.

“É quando percebe alguma coisa a cutucar-lhe as costas. Perdido em um verdadeiro turbilhão de emoções, treme, o coração bate aceleradamente, parece uma fanfarra muito vista em Xavier nesses últimos dias. Por um milagre, a correnteza o leva à tona e o faz respirar.”

 

Agora começa a lembrar o que houve realmente.

“Volta a respirar e a ver os troncos e raízes na margem. O pavor e a vontade de viver não o levam a investigar a forma como emergiu. No momento em que Francisco está prestes a afundar novamente, surge ao lado dele um boto, que nada pra lá e pra cá, assustando-o. Sem titubear, o mestre se agarra em uma das nadadeiras e o boto o leva, gentilmente, para a beira.”

Atônito e sem querer muita conversa, o professor continua recordando.

“Segurando nas raízes, recupera o fôlego. Como se fosse um animal de estimação, o boto o afaga, tentando animá-lo. Em estado de choque, e respirando energicamente, Francisco não consegue reagir. A chuva diminui, até passar totalmente. Quanto ao animal, depois de cumprir a missão, retira-se com muita honra e humildade, deixando na alma do professor um misto de gratidão e surpresa. Quando recupera totalmente o fôlego, o mestre sai da água, se arrasta e consegue sair do barranco, embrenhando-se na mata, completamente atordoado.”

O professor começa a estranhar a situação no meio do rio, a bordo de um barco. Fita as águas turvas, sente um pavor medonho. A ideia da morte o assola mais uma vez. De uma hora para outra, sente-se dominado por uma fobia de água que se instala rapidamente, e percebe que aquela coragem de aventureiro havia sucumbido nas profundezas. Assustado, levanta-se, esconde-se por trás de algumas caixas amarradas ao lado dele e berra para ser tirado dali.

Falando com o delegado sobre o estado do professor, Telma corre para prestar socorro. Francisco, enfim, a reconhece, e se deixa abraçar por ela.

— Calma, já passou, já passou.

Telma tenta acalentá-lo, enquanto o delegado, enciumado, fixa o olhar no casal. Messias observa o rio e avista um boto. Cutuca o delegado, mas o boto, muito mais rápido, submerge antes de ser visto.

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