O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XIII. Tempestade na mata

O professor Francisco Bonartério completou um mês em Xavier. As águas do rio não param de subir. Os crimes e a repercussão na cidade, mais as inquietações do mestre, interromperam a pesquisa por uns dias. A retomada se atrasa ainda mais porque explode, no coração da selva amazônica, uma grande farra que o professor nem percebeu que se aproximava: o carnaval.

Blocos em algazarra levantam poeira, no ritmo de músicas da época e em meio a plumagens coloridas e fantasias espalhafatosas. Ao lado de Telma, o mestre se espanta:

– Já estamos no carnaval?

A vizinha responde:

— Aqui o carnaval chega mais cedo e termina muito mais tarde que nos outros lugares.

Indiferente, o professor vê os foliões passarem. Telma ignora o mau jeito e se anima. Crítico dessas manifestações, Francisco se recolhe. Carnaval é um luxo não cobiçado nem desfrutado pelo intelectual. Francisco sabe que Telma é uma boa mulher, e sofre calado por sentir uma atração tão forte por ela.

Sozinho, impaciente, o professor se permite um arroubo de liberdade. Resolve se aventurar no rio, em busca de sossego para arrumar as ideias. A primeira experiência serviu de lição. Francisco faz a canoa deslizar sobre as águas com habilidade e segurança. Não tem muita dificuldade para dar as remadas iniciais. Durante algum tempo, passeia e admira a beleza dos igapós, igarapés e da vegetação do lugar, enquanto se afasta, cada vez mais, da orgia carnavalesca que impera em Xavier.

Inesperadamente, traído pelo vaivém da maré, sai da enseada e entra na correnteza. Sente a pressão e se assusta com a velocidade da catraia no leito do rio. Mais por instinto do que por conhecimento, consegue encostar a canoa na primeira margem acessível, sem pedras nem paus. Desce e pisa no barral da margem. Amarra a canoa no galho de uma árvore e segue por uma trilha. Subindo uma colina, encontra uma centenária castanheira que lhe oferece a sombra desejada para refletir.

Ouvindo o cantar de centenas de aves de beleza desconhecida, deslumbrado com a beleza natural, o mestre analisa suas anotações. Sentado ao pé da árvore com mais de quarenta metros, com vista para o rio, analisa, de forma fria e sem juízos de valor, suas anotações, produto de todo o seu trabalho, e deduz que a lenda do boto surgiu apenas para encobrir os deslizes das caboclinhas ou isentar de culpa algum coronel. É uma lenda perfeitamente aceitável e necessária nessa região do delta, cujos habitantes não enxergam qualquer pecado ou culpa no ato sexual.

Concluindo a missão do dia e, sentindo-se realizado e merecedor de um prêmio, levanta-se, com o ego inflamado, e caminha, como se estivesse nas nuvens, de volta para a canoa, imaginando os convites que receberá das universidades para dar as suas palestras. O momento de êxtase é quebrado por um farfalhar não muito distante. O professor se sente observado. Seu coração acelera, ele se levanta e segue apavorado na direção da beira, onde a canoa está amarrada. Ainda com as pernas trêmulas, toma novo susto enquanto desamarra o transporte. É Olegário, um pescador da vila que, bradando com um vozeirão alto e firme, alerta:

— Vem chuva forte por aí. Se vai remar agora, professor, vá bem pela beira.

— Ah, sim, muito obrigado.

 

Rapidamente, o céu começa a ficar cinzento. Folhas, mato e palhas de tucumã voam sobre as águas. As árvores se deitam com a força das rajadas. O vento afasta mais a canoa da margem. Assustado, Francisco rema com força. A tempestade despenca. Gotas enormes atingem a cabeça do mestre desprotegido:

— O caboclo tinha razão.

O temporal está formado. As palhas dos pés de tucumã, que se desprenderam, decolam do chão e acertam em cheio o rosto do professor, furando sua face amedrontada com seus espinhos resistentes. A dor e o sangue o fazem remar com mais força e com menos habilidade ainda. A canoa começa a se encher d’água, e ele observa que a correnteza adquire mais força; ele sente que a embarcação não resistirá por muito mais tempo.

Em seu terror, Francisco vê as raízes expostas na beira do barranco sendo engolidas, aos poucos. Mais uma semana e as árvores estarão dentro d’água com suas raízes arrancadas. Nesse momento, só elas podem salvar a sua vida, desde que ele as alcance a tempo.

O mestre se esforça para aproximar-se o mais rápido possível, com as últimas forças que ainda lhe restam. É a única chance de sobreviver. Ele respira fundo e espera o amargo desfecho. O rosto sangra. Antes de chegar ao barranco, a velha canoa afunda. Apavorado, Francisco sente toda a fragilidade da sua ciência diante dos caprichos da natureza e se debate com a correnteza sem soltar o ar dos pulmões. Fica no meio de galhos que descem o rio com violência e vê que seus braços e pernas, seu corpo inteiro, até sua consciência, misturam-se ao rio, e que bastam mais alguns segundos para que tudo esteja perdido. Sem forças, o professor vê que ele e todo o seu árduo trabalho estão se misturando ao rio.

 

Nesse momento de desespero, abatido, Francisco despede-se da vida. A única imagem que consegue registrar é a de bolhas de ar formadas pelas águas debatidas que rasgam as folhas do seu precioso trabalho. Tomado de pânico, encontra um fio de esperança na última linha de seus pensamentos: Telma.

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