O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

V. Tempo perdido

A Amazônia, lugar de encantamento e mistérios, fascina e amedronta os forasteiros, sobretudo o homem urbano, acostumado aos luxos e às comodidades proporcionados pela vida moderna oferecida em regiões como o Sul e o Sudeste do País. Em Xavier, a vida tem o ritmo da floresta.

 

 

Empurrado pela curiosidade, Francisco segue Messias por um fio de terra na mata até a casa de Diva e Jonas. Diva estende roupas no varal. Canta, a voz esganiçada, uma modinha regional, para espantar os demônios, diz-se. Com cautela, o professor aguarda o momento certo para a aproximação.

Na hora, porém, de dar o primeiro passo em direção ao quintal da senhora, surge Jonas. Messias para, imediatamente:

— Parece que a noite foi boa. Pela cara, o coitado está com uma pororoca porruda na cabeça.

Tecendo o comentário, o caseiro aproveita para falar sobre como Jonas dava trabalho para a mãe, por estar sempre envolvido em brigas, e geralmente por um único motivo: mulheres,

Dona Diva reclama com o filho:

— Essa vida não tá certa do jeito que tu leva. Não te criei para ser um rufião.

Jonas não liga.

— Tá bom, mãe, chega, né? Mal a gente acorda e já começa a falação. Deixa eu me recuperar pelo menos, tá bom? Depois a senhora começa novamente.

Francisco entende que a hora é imprópria para abordagens, ainda mais sobre tema tão espinhoso – botos e suas estripulias.

— Vamos embora, Messias. Voltarei outra hora, sozinho.

Pensativos, os dois seguem rumo à praça da cidade e, chegando lá, ao perceberem a presença de dona Maria, uma senhora muito conhecida por fazer suas reuniões semanais no terreno perto da colina, o caseiro muda a expressão. Ela sempre oferece, gratuitamente, o chá feito da união do cipó com a tal folha especial, de conhecimento indígena, e realiza rituais de cura, cujos participantes costumam ser estrangeiros. Dizem que os gringos ganham muito dinheiro com essas coisas, mas Maria não aceita nada de ninguém.

Dona Maria também é criadora de gatos maracajás, os felinos mais rápidos e perigosos da floresta. Ela caminha e se aproxima do velho caseiro e conterrâneo. Olhando bem nos olhos do Messias, concentra-se e sem querer assusta o professor quando, do nada e rapidamente, bate na testa do caseiro com a palma da mão direita dela, como se desse um passe ou alguma coisa do gênero.

O mestre não consegue disfarçar o susto, e solta um suspiro barulhento de quem foi pego de surpresa, chegando a dar um passo para trás. Dona Maria vira-se, fitando bem os olhos de Francisco, e achega-se para fazer o mesmo na testa dele. Contudo, antes de completar o simples ritual, para e diz:

— O moço tá precisando ir lá no terreno. Não anda muito bem das ideia, tá confuso. Aparece lá pra beber um chá cum nós, vai fazer bem pro moço. Vai abrir a mente. É muito importante pra quem acabou de chegar aqui nessa floresta e ainda não sabe muita coisa das coisa daqui.

Maria olha para o caseiro, e ordena sutilmente uma visita acompanhada. Messias morre de medo dessas coisas de entidades da floresta. Apenas confirma com a cabeça, tentando não se comprometer mais.

Quando a senhora se distancia, Messias revela:

— Não liga, ela é assim mesmo, meio tantã.

Faz com o dedo em volta da orelha o gesto bem conhecido de todos. O pesquisador esboça um sorriso, mas muda de ideia quando o velho diz:

— Ela é bisneta de curandeiro. É a única mulher da família que herdou esse dom, dessas coisas místicas da selva ligadas à união de alguns vegetais e defumações com cânhamo e outras ervas.

Pela cara de Francisco, tudo indica que Messias se livrou, temporariamente, da missão de levá-lo ao terreno da dona Maria.

O caseiro e o professor andam até a praça da cidade. Passam pelo bar do Miro e encontram o patrão enchendo a cara de cachaça. O acadêmico olha curioso para o caseiro, que tenta explicar:

— Ele bebe todos os dias. Dizem que é a mulher dele, que faz da vida dela o que bem entende, sem dar a mínima pro marido.

O caseiro nutre um sentimento ruim em relação ao patrão da vila. Ao ouvir a explicação de Messias, o mestre reflete: “Sei bem o que é isso; traição”.

Em seguida, diz:

— Isso deve ser muito difícil de lidar. Ainda mais em uma vila pequena como essa, onde todos se conhecem.

As dificuldades começam a se revelar. Pela primeira vez, Francisco sente a pressão de viver no interior da Amazônia. Não está conseguindo desenvolver o trabalho com disciplina, profissionalismo e imparcialidade. A cada instante, se vê mais distraído dos seus afazeres profissionais, e envolvido com as personagens desta magnífica e assustadora localidade. Sente a diferença nos moldes de conduta: “Onde estará a poesia disso tudo? Um lugar tão rico em folclore. Para onde me mandaram?”

Messias toma seu rumo e Francisco segue sozinho. Andando pela sombra, relembra alguns fatos do dia, e chega a achar engraçadas algumas situações. Nessa caminhada, numa tentativa de autoencontro, acaba se desencontrando de vez do seu objetivo, ao deparar novamente com o velho gordo do navio, de chapéu branco e charuto robusto na boca.

O professor nota que ele está com dificuldades para pegar a sua carteira, caída dentro de um esgoto correndo a céu aberto entre matos e lamaçais, apoiando-se no banco ao lado do aguaceiro e exibindo suas nádegas, que, a essa altura, já saltam para fora da calça frouxa.

Aquele ser embriagado, sem coordenação dos movimentos, um verdadeiro lixo humano entregue aos vermes, desperta a curiosidade do professor, que se pergunta de que modo aquela carteira teria ido parar dentro do esgoto. E ainda mais:

— Como é que esse porco bêbado vai conseguir resgatar os documentos?

Todos esses pré-requisitos estimulam o professor a exercer a solidariedade. Não consegue evitar e oferece ajuda, espontaneamente, antes mesmo de uma resposta.

Atento aos detalhes, Francisco resgata a carteira e vê que está recheada de dinheiro. O homem do navio fica grato com a delicadeza e começa uma prosa diferente, cheia de pompas e informações recentes do mundo. Aparenta ser um homem bem antenado com os fatos econômicos do país. Com a língua solta, informa que veio para verificar a produção de um fornecedor, para não dizer atravessador. Um homem poderoso, um tal de patrão.

O pesquisador não gosta do tom berrante e arrogante, e sente arrepios no momento em que o sujeito puxa uma nota graúda para oferecer-lhe pelos serviços prestados. O mestre já havia conhecido muitos borra-botas nessa vida, que se achavam os donos da cocada preta por serem correntistas de bancos estrangeiros com contas abarrotadas de libras esterlinas. Invariavelmente são escrotos, sebosos, corvos da herança alheia, miseráveis de alma.

Mostrando o seu repúdio natural a esse tipo de gente, Francisco recusa o presente, mas com muita sutileza e educação. O cordial senhor, sem ter muita gente para conversar no momento, guarda a nota graúda na carteira. Finalmente, se apresenta dizendo, com a intenção de impressionar, o nome, prenome e sobrenome:

— Abreu Mascarenhas Salvador!

Bem-humorado e bêbado, completa a frase pomposa:

— De Salvador Dali, às suas ordens, meu nobre. Percebo que és um intelectual.

Levantando a sobrancelha direita, convida o professor para um sarau, na casa onde está hospedado. São uns franceses que moram em Xavier e cuja casa fica bem no alto da colina. Um lugar conhecido como Pombal de Xavier, dentro de uma área reservada para os biólogos, onde se formou uma comunidade de estrangeiros exóticos e excêntricos. Um lado da vila desconhecido até agora.

O dia estava perdido. Sem Jonas, sem filho de boto, Francisco decidiu voltar para casa e mergulhar em leituras. O material que carregou de Manaus estava à sua espera.

Chega rápido. Ainda no quintal, encontra Telma. Por um instante, ele hesita em se aproximar. Mais uma vez, a mulher toma a iniciativa. O pesquisador fala da dificuldade que está tendo para achar pessoas que possam ajudá-lo na investigação das lendas:

— As pessoas daqui me parecem bastante despreocupadas. Não creio que se importem com o meu trabalho. Digo, no sentido de ajudar.

Telma acha tudo um exagero e questiona:

— O senhor tentou falar com mais alguém?

Ele ouve as palavras tranquilas da vizinha. Realmente, não conseguiu abordar ninguém. É apenas o primeiro dia e já está desanimando.

— Você tem razão. Não posso esmorecer.

— Eu tenho um grande amigo na vila dos pescadores, o nome dele é Ayrão, gente muito boa e com um coração enorme. Se bem conheço, o velho vai adorar ajudar.

Um pouco distante, mas ouvindo a conversa, Messias concorda:

— É verdade, o caboco é de fé.

Telma continua:

— Ele é o líder da vila e não existe ninguém mais sabido de histórias de lendas, de cobra-grande, de boto, de yara…

Empolgada, fala com a respiração ofegante:

— Vai contar tudo que o senhor quiser, quer apostar?

Brinca, apostando apenas por apostar. Trata-se de uma forma simples de utilização desse verbo, com o único fim de dar total credibilidade ao fato exposto.

— Confio na senhora, não precisamos apostar nada, dona Telma.

Francisco está comovido com a disposição dela, e abre um belo sorriso que havia muito tempo não ousava dar.

— E como chegamos lá?

Os nativos se olham com cumplicidade e, sem perda de tempo, seguem caminhando para a beira do rio onde está a catraia. Francisco entende. Vai atrás, agora motivado e confiante. Muito pelos estudos, mas também por um fascínio pela mulher que já não consegue esconder.

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