O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

IV. A vizinha

A casa tem uma pequena sala onde o mestre fará suas anotações e escreverá relatórios e textos. Há, ainda, uma mesa, uma Remington seminova, papel, lápis e caneta. A cozinha agrada, com o assoalho de tábuas, a meio metro do chão. O quarto é grande. Uma poltrona, uma cômoda velha, um criado-mudo e uma cama de casal fazem parte da mobília.

 

Cansado da viagem, Francisco praticamente se joga na cadeira da varanda e desfruta da paisagem. Relaxado, começa a repassar sua jornada, assim como todas as situações vividas até aqui:

— A vida é mesmo cheia de surpresas!

O terreno tem um declive, que serve de caminho até as águas do Claro. Trata-se de uma rampa natural, escorregadia quando está molhada, e que é pura argila. O rio de barranco, sem praias, dotado de uma força incrível, arrasta tudo pela frente. A maré sobe rapidamente. Há três anos, causou a maior cheia dos últimos tempos.

Escurece e os sons da floresta são ouvidos pela primeira vez. Os sapos, os grilos fazem um belo coro de graves, quase barítonos, que se contrapõem aos agudos dos carapanãs. De pé, estapeando o vento, o professor avista Messias numa prosa com uma mulher mestiça perto da cerca no quintal de papaveráceas.

Telma é vizinha, e logo o professor a reconhece, da praça, na chegada, pelo

vestidinho de estampa azul. Com espasmos de adolescente, não sabe o que fazer. Contenta-se em observar de longe, da varanda. O professor acena para os dois, receptivo e curioso. “Nunca vi nada tão deslumbrante em toda a minha vida. Nunca uma pele queimada me chamou tanto a atenção”, pensa.

A noite está quente e o céu, estrelado. Depois de fechar o caderno de anotações, Francisco desce os degraus da escada da varanda e senta no batente. Por algum tempo, disfarça a ansiedade. Jamais se atreveria a embrenhar-se na conversa dos outros. O povo de Xavier é hospitaleiro e gosta de se aproximar. Tal constatação anula sua resistência à aproximação do casal.

Por trás de Messias, a vizinha chega timidamente, calada e sem fazer movimentos bruscos. Estende a mão para apresentar-se:

— Seja bem-vindo, professor, eu sou a Telma. Somos vizinhos, estarei sempre por perto.

Calado, o mestre tenta compreender. Tem alguma coisa que não combina, mas não sabe o que é: “Que atitude foi essa? Que mulher! Não imaginava que
existisse algo assim bem aqui, no meio da selva”.

Francisco disfarça a surpresa. Nesse momento, outra cabocla, também vizinha, chama por Telma. Deve estar querendo saber as novidades sobre o novo morador da casa que tem os fundos para o rio.

Telma vai a contragosto, disposta a dispensar a outra rapidamente. O caseiro aproveita e coloca o mestre a par da situação:

— Essa moça é corajosa. Teve um caso com um moço de fora, assim como o senhor, paulista. Era casado com uma desavergonhada que metia chifre nele com
tudo que era caboco da região. Enquanto dona Telma morria de pena do cabra. Foi aí que começaram a conversar e logo se apaixonaram. Quando foi um
belo dia, essa caboca se enfezou e riscou o facão na pedra, aqui no meio da rua, na frente da casa dele. Disse que se a vaca não fosse embora e deixasse o
pobre em paz, ela ia fazer uma desgraceira.

Francisco arregala os olhos com a conversa, mas não interrompe o caseiro.

— A faísca se espalhava pela rua, e ela riscava o facão com mais força. A mulher do cabra, apavorada, foi embora e a Telma entrou na casa no dia seguinte. Viveu com ele um tempão. Ela é conhecida aqui por causa disso e todo mundo respeita ela.

Por alguns segundos, o professor volta para o ano de 1952, mais precisamente para a sala de jogos da casa dele, em São Paulo. Clara e o amante; Clara, maldita. Lamentanão ter dado sorte de arranjar uma defensora por lá, tão exuberante quanto essa vizinha.

Telma se aproxima. Sem mais perguntas ou explicações, o assunto se encerra. A noite avança e os três ficam por ali, falando da cidade grande, da Amazônia, das lendas. Os olhares da vizinha, esquivos, meio tímidos, ora compenetrados, ora risonhos, perturbam o professor: “Uma mulher com os olhos que riem. Um espírito bom”.

A conversa se alonga até o inesperado: as histórias que circulam no imaginário popular. O caso de dona Diva e Jonas chama a atenção do pesquisador.

— Esse é conhecido por aí como o filho do boto e parece que gosta de ser chamado assim. Pelo menos a mulherada adora.

Messias continua a falar:

— Ninguém sabe, na verdade, quem é o pai dele. Ele é um caboco diferente, moreno, tem os olhos esverdeados e cabelos encaracolados. Isso não é normal por
aqui.

Vai desfiando a história de acordo com o contado e o ouvido. Arremata, com a certeza de quem fala a mais pura verdade:

— É o que dizem por aí.

O professor quer conhecer essas pessoas e combina uma visita pela manhã à casa da tal dona Diva e Jonas. Só pensa em ver de perto o tal filho do boto, e quem sabe até conhecê-lo.

Telma acrescenta:

— O senhor pode até não acreditar, mas eu via o boto todos os fins de tarde, lá no quintal da casa da minha mãe. Ele ficava sentado no banco debaixo do cajueiro. Sempre com o terno branco e chapéu.
Ficava paradinho, durinho, acho que nem piscava, ficava minutos olhando o rio, antes de decidir qual direção tomaria para dar o bote, atacar as cunhantãs nas
vilas. Depois de decidido o local, se jogava no rio de roupa e tudo.

Incrédulo, mas assustado com a certeza dela em relação ao boto, imaginário aos olhos dele, Francisco fica perplexo. Não fazia ideia da força da lenda. Para ele, essas afirmações são referências do inconsciente coletivo, trabalhando em conjunto com a autossugestão e levando o ribeirinho a desejar intimamente
testemunhar tudo aquilo que supõe ser real. Mesmo assim, tenta ser educado e demonstra interesse na história. Pergunta sem muito entusiasmo:

— E quando ele caía na água, o que acontecia?

A vizinha percebe a ausência da fé no assunto. Indignada com a pergunta, conclui em tom irônico:

— Ué, ele desaparecia, mergulhava e virava boto.

Francisco arrepende-se pelo tom de desdém. Telma inverte o jogo, naturalmente, sem intenção de dar o troco:

— O senhor gosta de mulher, professor?

Francisco desaba. Antes que a simples questão fosse interpretada em outro sentido, a vizinha aponta:

— Sei que gosta, conheço bem os homens. Agora imagine um boto nascido pra fazer essas coisas. Ele faz de tudo até conseguir fisgar a fêmea. Usa poderes encantadores. Se o senhor não acredita nisso, como pode escrever sobre lendas?

O professor apenas sorri. Para si, admite o grau de inteligência da mulher. Concorda, mesmo sabendo que não precisa acreditar em lendas para escrever sobre esses assuntos. Levanta-se, pede licença.

— Obrigado pela conversa maravilhosa. Agora preciso dormir um pouco. Estou realmente exausto.

Telma não se sentiu ofendida. Sabe que as pessoas de fora demoram um pouco para se adaptar. Aproxima-se para dar dois beijos no rosto visitante. Assusta-o com a aproximação repentina.

Os nativos de Xavier vão embora. O pesquisador se recolhe. Vai para o quarto com o material de leitura e, sem tomar banho, se joga na cama, enquanto sua memória recente trabalha. Deleita-se com a imagem da vizinha, terna, autêntica, sem defesas ou disfarces.

Perdido em seus delírios, vira-se para o lado e rabisca uma folha em branco com um lápis de ponta grossa. Esboça um contorno de corpo feminino. Sua mente vagueia, como se tentasse buscar no vácuo da memória fragmentada pelo destino uma lembrança que vem dos ateliês do passado conturbado.

O sono chega rápido. Uma noite tranquila, sem pesadelos, sem grandes emoções ou movimentos agitados. Ao acordar, o professor percebe algo diferente. Alguma coisa mudou ao redor. Sente uma aura mais leve e mais alegre. Cheio de ânimo, levanta-se e vai para a mesa da cozinha. Faz a refeição matinal nessa casa cercada pela natureza das mais selvagens existentes na terra e, sentindo o calor da região, toma um banho. Após lavar o corpo e tirar a poeira daquelas estradas, prepara-se para realizar a primeira entrevista. Está nervoso e com uma ansiedade que acompanha todos os seus passos.

Arrumado, vai até Messias, que capina o quintal. O rio está a poucos metros dali.

— Esse rio tá subindo muito rápido, esse ano a cheia vem forte.

O velho homem, pingando suor, observa as águas, e intrigado com a cheia volta sua atenção para o mestre, que parece animado. Eles se cumprimentam, e o caseiro guarda a tesoura rapidamente, para que ambos possam pôr em prática os planos traçados na noite anterior.

— Tudo pronto, professor?

— O senhor é quem manda, seu Messias. A hora que o senhor quiser.

Depois de lavar as mãos na bica natural, próxima ao jardim, os dois saem numa conversa descontraída, rumo à casa da mãe e do filho do boto mais conhecido da vila Xavier.

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