O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

III. A sombra do passado

O rio Negro logo mostra a sua fúria. O navio atinge a parte mais funda e uma tempestade assustadora se anuncia no alto. Ventos fortes e ondas apavorantes parecem abrir fendas a bombordo e a estibordo. A embarcação se assemelha a um pedaço insignificante de isopor no meio da tormenta. O movimento lateral provoca arrepios nos viajantes.

Para Francisco, trata-se de uma sensação diferente de todas as experiências vividas por ele até aquele momento. Algo estranho no estômago se manifesta. Sentindo que pode vomitar todo o café da manhã, tenta controlar-se e se distrair com as pessoas no convés, a maioria sem demonstrar qualquer temor.

Respirando fundo, o professor cheira os dedos e as palmas das mãos, como se buscasse oxigenar as entranhas. Puxa o ar uma, duas, sucessivas vezes. No entanto, todos os esforços são vãos. O medo de desaparecer no fundo do rio faz suas tripas se contorcerem.

Subindo e descendo ao sabor das vagas, o navio consegue escapar da tempestade e aponta no rumo da vila ribeirinha. Trôpego, Francisco caminha na direção do camarote, pois sente que precisa descansar um pouco. Acomodado, lê um texto sobre as lendas amazônicas – seu objeto de pesquisas na universidade, em São Paulo, na cadeira de Antropologia – e adormece, enquanto do lado de fora a pujança da natureza da Amazônia mostra a sua força. Escrever um livro de Antropologia Cultural na selva amazônica é uma oportunidade única. Francisco se preparou a vida toda para isso.

Xavier poderia ser um ponto perdido na geografia, perto do fim do mundo. Mas não. A vila foi fundada em 1723, pelo frei Xavier Colono, da Companhia Curadora Francesa de Jesus Amado, uma das mais influentes e radicais catequeses do rio Madeira, e abrigou os destemidos e violentos índios mucuraras – de mucura, pelo forte odor, e araras, devido às penas coloridas usadas pelos guerreiros em combate. Para contornar as dificuldades iniciais com o povoamento, o governador, em troca de alguns favores, permitia aos brancos que se casassem com as índias, além de fornecer gratuitamente instrumentos agrícolas, terras e outros benefícios para as primeiras famílias. 

No delta Amazônico, principalmente em Xavier, os primeiros casamentos desse tipo, verdadeiras negociatas, perpetuaram uma cultura subjugada, crescente e atávica.

 

Nesse início da comunidade, era alarmante o número de suicídios cometidos por mulheres. Homens tiravam partido da lei e da facilidade de contrair casamentos apenas para adquirir terras. Como moeda de troca, ficavam com mulheres lindas e submissas.

Em 1955, depois de sublimarem o autoritarismo patriarcal branco, os xavienses guardam resquícios dessa formação. Ainda são muito quietos, calados e desconfiados. A liberdade conquistada, no entanto, promoveu mudanças decisivas. As práticas sexuais, curiosamente, recuperaram conhecimentos ancestrais.

Durante a revolta dos cabanos no Amazonas, Xavier foi uma das raras localidades resistentes aos ataques rebeldes. As mulheres tiveram um papel fundamental nessa vitória. Apesar de terem sofrido violentas investidas armadas, não sucumbiram. Antes, já haviam resistido ao levante dos índios mucuraras, que invadiram o local à procura dos franceses ali residentes. Muitos homens brancos foram capturados e assassinados. Foi nesse momento que as mulheres superaram todas as suas limitações físicas, e contra-atacaram com seus cavalos, resolvendo a situação nos golpes dos seus terçados, por meio da degola e da aniquilação do inimigo. Por isso, as guerreiras amazonas de Xavier vivem no sangue e na memória desse povo.

Trancado em seu mundo por alguns minutos, afundado em memórias, depois de um longo banho, Francisco tenta relaxar. Fecha a porta e procura apagar a imagem da mulher de sua mente, mas sente que as garras do trágico passado, encravadas na alma, jamais darão sossego ao seu espírito atormentado. A cena se repete, dias e dias, noites e noites: o flagrante dado na infiel, a esposa possuída diante de seus olhos. Impotente, raivoso, suspira e afunda o rosto nas mãos, sufocando o grito que expressa toda a sua perplexidade com o comportamento desumano.

O sol arde, já nas calmarias do rio amanhecido. Todos os fenômenos da natureza parecem se manifestar exageradamente. Aqui, os raios de sol são mais intensos, a chuva desaba com vigor e a cultura arrebata a alma das pessoas. As estrelas têm mais brilho, a mata, as águas, tudo se revela exuberante. Desde muito tempo, desbravadores desavisados padecem com as surpresas proporcionadas pela natureza intrigante e nada misericordiosa.

Francisco observa o rio, pensativo, quando vê um mamífero saltar, exibido, como num ritual de boas-vindas. Graciosamente, outro emerge para compor a coreografia. Logo aparece outro, e outro, e mais outro, como batedores abrindo passagem para o vapor. Em pouco tempo, o navio está cercado.

Com um tripulante, o professor comenta:

— Esses golfinhos são lindos.

O marinheiro, caboclo da região, permanece quieto, sem muita expressão, procurando sinais de rebojo. Observador da cena com a qual se acostumou desde menino nas beiradas da maré, devolveu:

— Tu é leso, é? Isso é boto, rapá!

Raimundo retomou o seu posto de observação. Ele é responsável pela atracação do Dona Carolina. Quando menos se espera, surge o porto usado como local de desembarque para Xavier e mais duas vilas da região.

O movimento das embarcações desenha o cenário da orla e é uma das principais causas de acidentes. Desembarcados, os caboclos partem como podem para seus destinos, de canoa, carroça, alguns a pé, em meio à mistura de vozes que toma conta do local. Confuso, Francisco se vê diante de um grande comércio, cheio de barracos e botecos. Nem imagina que terá de pegar mais uma condução, ônibus ou alguma coisa semelhante, até Xavier.

O povaréu se arrasta num vaivém de dar tonteira, com paneiros de frutas, sacolas com peixes e caixas de suprimento. Uma discussão entre dois garotos amazônicos chama a atenção de Francisco para um obstáculo a mais no contato com aquela comunidade. Que língua se fala por ali? A mistura do português não escolarizado com dialetos indígenas e heranças africanas atordoa ouvintes não acostumados.

— Porra, muleque, se tu fizé isso de novo vou te “afulerar”, vou te dá-li uma tapa nessa tua venta.

O professor não sabe o motivo da briga. O curumim ameaçado responde:

— Dê-li, então, fuleiro!

E o mais zangado responde:

— Vou dá-li, hein!

E o corajoso retruca novamente:

— Dê-li!

— Eu dô-li!

— Dê-li!

— Vô dá-li, mermo!

— Então, dê-li se não quem vai dá-li sou eu!

O pesquisador logo desvia sua atenção do duelo verbal para tentar encontrar algum sinal dos seus anfitriões no meio da babel-baré.

Depois de percorrer 430 quilômetros pelas águas da Amazônia, finalmente o nobre intelectual desembarca. Passando pela rampa, olha para a água de cor barrenta, engolindo embalagens de produtos industrializados. Com os pés no chão, Francisco dá os primeiros passos decisivos para a descoberta de um novo mundo.

O sol não dá trégua. O vento quente sufoca. O professor observa os personagens da comunidade, à procura dos anfitriões que o aguardariam. Alguns moradores de Xavier esperam aglomerados. Carlitos, barbeiro, desempenha também a função de condutor do ônibus que faz o percurso até a vila, quando requisitado para tal pelo patrão.

Dono das terras produtoras de juta e piaçaba, Lindemberg, o patrão, é um homem poderoso, ligado às autoridades da capital, ao prefeito de Borba, município onde fica Xavier. Senhor de mando da região, é o responsável pela acomodação do professor Bonartério. Janaína, a esposa, faz sempre tudo o que lhe dá na telha, assim como Irina, a filha do casal, menina voluntariosa e cheia de vida e de ideias libertinas.

Jaílson, o delegado, particularmente considerado um borra-botas, chega a cavalo, acompanhado do assistente, Oliveira. Desprezado pela burguesia local, Jaílson exibe um jeito protetor que, na verdade, esconde sua face oculta, corrupta, violenta e vingativa.

Na porta do veículo encontra-se Miro, dono do mais antigo boteco da vila.

— Será que ele bebe? — imagina o patrão, criando expectativas, e já contente com a possibilidade de encontrar um novo parceiro de copos.

Janaína diz em voz alta o que realmente está pensando:

— Esses intelectuais devem ser todos uns chatos.

O mestre consegue ler a placa com seu nome escrito. O coração dispara. Ele respira fundo para não dar chance a uma crise respiratória. Oxigenado e sentindo-se um pouco melhor, mira o alvo e vai até o grupo.

Jaílson fica todo gabola por acertar em cheio o óbvio. Francisco é recebido com cordialidade e elegância. Sente que será bem tratado por esse povo na hora em que Irina abre muito mais que um sorriso, deixando o visitante sem graça diante de tanta doçura.

Janaína, com seus quarenta e poucos anos, cumprimenta o visitante com palavras simples, mas elogiosas, deixando de lado suas impressões sobre os intelectuais ao ver a estampa e o tipo. Francisco responde com humildade:

— Sou apenas um simples professor, mestre em Antropologia Cultural, paulistano de nascimento, de mudança para esta região. Meu destino é esta vila.

Xavier fica no delta amazônico, entre os rios Madeira e Claro, na margem esquerda. Uma área que pode afundar a qualquer momento, rezam as histórias que atravessaram gerações. Segundo uma das lendas da região, o surgimento da vila se deu em cima de uma cobra-grande. Dizem que, se a cobra se mover, a vila afunda.

O professor arrisca um sorriso e completa:

— Preciso escrever um livro baseado em estudos sociológicos e entrevistas locais diretamente com os nativos desta terra. O trabalho também vai ajudar em uma investigação sobre crimes e violência na floresta.

O professor evita detalhes. Pondo um fim à prosa, o patrão ordena a todos que embarquem no ônibus, e é prontamente atendido. Observando o cais na beira do barranco e o transitar de pessoas muito diferentes, o mestre reconhece o gordo de chapéu branco, o tal Abreu, comerciante de juta, e a ruiva do convés. O contraste entre poderosos e miseráveis fica aparente. Xavier é a cara do Brasil.

O ônibus seguiu por uma via de piçarra aberta na selva. Mais à frente, desviou e entrou numa trilha. O mato fechado, o túnel de folhas e galhos das árvores, o cheiro úmido de vegetação decomposta, o barulho dos bichos, o cantar das aves, tudo se mostra completamente desconhecido pelo forasteiro, como se fosse uma floresta encantada.

À medida que o ônibus se embrenha, com a vibração do motor, o professor nota uma dormência tomando conta do seu corpo. Suas pálpebras começam a pesar, e o espírito parece querer abandonar a velha carcaça. Ele se esforça para não perder a consciência.

Com a testa quente, Francisco percebe que as árvores ficam rapidamente para trás, e um sono profundo começa a se anunciar. Ele se ajeita no banco e respira fundo. Pela janela, enxerga um indiozinho de cócoras em cima de um toco de árvore ainda enraizada. Não entende o significado daquilo e torna a olhar com mais atenção. O curupirinha agachado desaparece num piscar de olhos. Atônito, o professor pergunta para Janaína se ela viu a mesma coisa.

— Vi o quê, professor?

Francisco resolve não valorizar a situação, deixando pra lá, quando Irina, virada para trás, com o braço apoiado na cabeceira da poltrona, pergunta quanto tempo ele irá ficar na vila Xavier.

— Isso depende de muitos fatores.

Movida pelo desejo, ela sabe que terá tempo suficiente para aventuras e prazer.

 

O barbeiro motorista avisa para os passageiros fecharem as janelas, pois existem muitos macacos-prego nesse trecho do caminho. De repente, os macacos atiram suas fezes no ônibus. O professor não acredita no que vê, os vidros salpicados de cocô, e se pergunta como esses animais conseguem defecar quando bem entendem. “Será que estocam matérias fecais à espera de um coletivo barulhento?”, pensa.

Irina ri. Janaína repreende a filha com tapinhas no braço, mas as duas acabam caindo juntas na gargalhada. Lindemberg não acha nada engraçado, e repete a frase chula, expressão do universo xaviense, com a qual logo o professor se acostumará:

— Veja pelo lado positivo, professor, ao menos não é o povo que está jogando merda na gente.

O grande túnel de folhas e galhos de árvores centenárias vai ficando mais ralo. A dormência do corpo passa e Francisco nota um brilho diferente no meio da vegetação. A luz se espalha, intensa, clareira na selva. Magnificamente, revela-se na frente do ônibus toda a vila de Xavier, iluminada por uma luz dourada, de um sol com brilho diferente para a época do ano.

O ônibus sai da floresta e segue por uma estradinha, contornando um pequeno vale. As casas da periferia ficam bem visíveis. Francisco se impressiona com a arquitetura do lugar. Tanto as palafitas, na parte baixa, quanto as casas, no alto da colina, são de madeira rústica e telhado de palha, com um tipo de trançado

bastante diferente, um acabamento requintado para a matéria-prima selvagem, doada pela natureza e colhida especialmente pelo mateiro com suas técnicas milenares de preservação.

Após alguns minutos naquele ramal de estrada completamente surreal, os viajantes desembarcam na garagem do ônibus que fica no lado leste, bem no começo de Xavier, perto do cemitério das amazonas da região. Daquele ponto em diante, por normas e respeito aos mortos, o deslocamento é a pé.

As ruas não são apropriadas para trânsito de automóveis. Na localidade, existe apenas um carro, que pertence ao líder da vila. Setecentas e trinta e oito pessoas habitam Xavier. No jogo político local, o número importa para a escolha de aliados.

 

Os sectários do patrão, ao cruzarem a praça, despertam a atenção dos moradores. O professor identifica uma mulher extremamente exótica, mestiça, muito bonita, sentada no balanço e não consegue parar de olhá-la. Percebendo o olhar, ela demonstra interesse pelo estilo do forasteiro. Levanta-se. Mostra o corpo inteiro, com um vestidinho de pano leve e estampa azul. O olhar é meigo, mas intrigante.

Mexendo sedutoramente nos cabelos negros, lisos e compridos, a mulher observa a passagem do mestre. Seus olhos amendoados e expressivos dizem tudo. A bela nativa irradia as vibrações da libido amazônica O desejo pelo novo e o pecado da carne residem em Xavier.

O paulistano sente o sangue ferver. Nunca havia sido objeto de um olhar tão profundo, quase selvagem. As mulheres da região do delta são bastante fogosas. Exalam seus hormônios sempre que aparece um visitante. Existe uma luz especial na aura das mulheres do lugar, uma certa magia. Entrelinhas dionisíacas escrevem a história dessa gente.

A caminhada com Francisco segue. Apenas a família do patrão acompanha o professor até a sua nova residência. Na frente da casa, que será hospedagem e escritório, Messias aguarda, em pé, como se fosse um verdadeiro guardião. Abre o portão e todos entram. O coronel dá as ordens:

— Messias, esse é o professor que estávamos aguardando. Cuide bem dele, viu bem?

O caseiro, humildemente, o recebe. Olhando para o marido de Janaína, enquanto disfarça rancores e mágoas antigas com o patrão, Messias divaga: “Um dia ainda acabo com a tua raça, filho de uma rapariga dos diabos! Pensa que pode fazer o que bem quer e ficar por isso mermo?”.

O chefão dá um sorriso com a boca repuxada para cima, mostrando os dentes e a gengiva:

— Professor, esse é o Messias, ele vai ajudar aqui no que for preciso. Isso aqui é pau pra toda obra, pode confiar.

O cansaço está à vista na expressão de Francisco e ele se antecipa para a despedida.

— Seu Lindemberg…

O patrão vai logo interrompendo:

— Pode me chamar de patrão, professor.

Sem questionar nada o professor rapidamente obedece:

— Patrão, muito obrigado pela recepção calorosa. A gente se vê

em breve.

A filha e a esposa do patrão se despedem com dois beijinhos no rosto do professor. Irina, sedutora, se afasta fitando os olhos nele. Seus dezenove anos são reveladores. Idêntica a todas as garotas da idade dela, mas diferente porque mais astuta, ousada, ativa a intuição feminina quando quer provocar. É fogosa e gosta de namorar.

A mãe, Janaína, por outro lado, não faz muito o tipo de mulher fácil, até porque sabe como conseguir as coisas, e não precisa ser infantil. O mestre percebe o jeito de cada uma. Observa o caminhar da família xaviense enquanto o caseiro fecha o portão. Estará sozinho, enfim, para mergulhar em pensamentos sobre o que está por vir – o real e a fantasia, o insondável espírito da floresta.

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