O Cobrador da Amazônia
Autor: Chicco Moreira
II. Véspera da Reisada
Amazônia, 1955
Uma explosão. Francisco acorda com um raio explodindo perto da aeronave, um hidroavião de dois lugares que sobrevoa o rio Negro balançando pra lá e pra cá feito o boi-bumbá. O sol tenta sair de trás das nuvens baixas, criando a sensação de que o céu está a fundir-se com o rio. Os raios solares formam uma coroa dourada a escapar pelos furos.
O piloto sorri para Francisco, que olha de canto e vê as correntes e os dentes que brilham, ouro no pescoço, nos pulsos, anel de esmeralda no dedo. Francisco disfarça olhando para o céu carregado.
— Fique tranquilo, professor. Isso é só um chuvisco. Chegaremos em breve.
Um outro raio explode ao lado da aeronave e Francisco se ajeita na cadeira.
— Estou tranquilo. Conseguiu essa esmeralda em Xavier?
— Não, essa aqui não. Mas lá praquelas bandas tem muito mais dessas.
— Apenas lendas, comandante.
— Será, professor? Eu sei que de lendas o sinhô entende, mas de pedras preciosas eu me garanto. Vá por mim. Ali naquela região tem é muita.
O rio e a floresta, pulverizados pela chuva, exibem um quadro em cores frias, de dimensões extremas, sem pontos de fuga aparentes. A negritude do céu funde-se com o negro do rio, tornando-os um só.
No convés do Dona Carolina, esticado em uma cadeira no bar, o velho Abreu, já beirando os sessenta anos, sempre com seu chapéu branco, bebe uma taça de vinho tinto e fuma um charuto robusto ao lado da mulher, Maria, um pouco mais jovem. Os dois mal se olham. A obesidade, a pose e a arrogância revelam a condição social do casal: ricos, muito diferentes da maioria dos viajantes.
O navio tem poucos minutos até a hora da partida. Abreu observa duas cunhantãs, meninas de doze, treze anos, que vendem doces, mas logo a atenção do gordo se fixa em uma bela ruiva de cabelos encaracolados, magra, com a idade da juventude exuberante, que surge do horizonte com vestido colorido, de golas, e senta na mesa ao lado. Maria não gosta do tipo e muda seu ar desinteressado para outro nada humorado.
Um marinheiro se aproxima e diz para as cunhantãs:
— Vocês precisam ir. Vão, vão. Senhoras e senhores, o navio vai zarpar em cinco minutos. Queiram, por favor, apresentar os bilhetes em seus camarotes.
Abreu se surpreende.
— Mas já?
— Antes da tempestade chegar por aqui, senhor… O senhor já está com seu bilhete?
Abreu confirma, enquanto todos olham para cima e conferem as nuvens. Abreu pisca para as duas vendedoras de bombons. Maria nem percebe e se levanta
— Deixa eu ir andando… Boa viagem.
— Fique bem. Só volto depois do carnaval. E não se esqueça: qualquer emergência mande um telex para o pombal dos franceses.
Maria se despede do marido com um beijo na testa. Abreu nem se mexe. A mulher vai embora. Amelinha, bem perto, sorri.
Abreu passa por trás da moça na hora em que o navio apita para anunciar a partida. O som é alto e assusta Amelinha. O velho agarra a ruiva por trás e os dois dão risadas e se beijam.
Chuva e vento balançam o hidroavião. As gotas batem forte no vidro da janela. Francisco guarda seu caderno na pasta e se segura. O piloto chama a torre pelo rádio.
— Aqui é o Gavião Aquático, prossiga com a informação. Positivo, torre.
Francisco pergunta:
— Problemas?
— O Dona Carolina zarpou. Não puderam esperar por ninguém, mas vamos interceptá-lo.
O piloto comprime os lábios com olhos bem abertos. Calibra as manivelas no painel e no teto do avião. Francisco olha pela janela. Manaus está à esquerda do hidroavião e, mais à frente, o navio vai se aproximando do encontro das águas que formam o rio Amazonas.
— Olha ali a sua banheira velha. Já tão sabendo que a gente tá aqui em cima. Fique tranquilo.
O piloto mergulha a aeronave e aponta o nariz na direção do navio Dona Carolina. A embarcação vai crescendo diante da cabine e Francisco registra os detalhes do painel à sua frente: um santinho, o terço, a imagem de Cristo. Na cara do piloto, pura adrenalina.
Abreu e Amelinha bebem champanhe em finas taças. Eles brindam no exato momento em que o hidroavião passa voando baixo sobre suas cabeças. Os tripulantes ficam assustados e preocupados. Os passageiros, confusos e eufóricos. Uns se abaixam, outros sorriem, outros vibram enquanto outros correm para ver a aeronave pousar nas águas escuras.
Após o pouso na água, o professor Francisco Bonartério embarca no Dona Carolina. Destino: Xavier. Esgueirando-se, meio sem jeito, por baixo das redes, despede-se do piloto do hidroavião com um aceno.
Com uma garrafa de champanhe na mão, Abreu passa por umas quinze pessoas aglomeradas e se antecipa para recepcionar o passageiro que veio do céu. Diante dos olhares curiosos, os dois se cumprimentam já com as taças na mão. Abreu distribui cortesia.
— Seja bem-vindo.
— Obrigado.
Os dois bebem em três goladas o vinho branco espumante, se olham e dão as mãos com energia:
— Eu me chamo Abreu.
— Francisco.
O hidroavião decola e desaparece por entre as baixas nuvens.
O pôr do sol derrama a luz amarelo-alaranjada no leito do rio. O navio segue seu rumo nas águas barrentas. A tempestade mudou de curso. O céu se abre para um lindo anoitecer amazônico.
Abreu, Amelinha e Francisco conversam no bar. O velho fuma charuto sem tirar os olhos da ruiva. O professor divide sua atenção para os dois. Abreu provoca:
— O que mais me interessa nessa peregrinação, meu jovem professor, são as aventuras. Para os homens casados se torna uma armadilha mortal; para os solteiros, um teste de virilidade e resistência, se é que me entende. São José para os profanos é o padroeiro de todos os cornos.
— Ouvi falar de muitas estórias sobre Xavier. A minha vida inteira. Mas essa analogia sobre o sagrado e o profano eu preciso anotar.
Francisco escreve num caderninho enquanto Abreu serve as taças.
— Você é jovem, escritor, antropólogo. Tem todo o direito de estar encantado com as lendas, com estórias fantásticas. Mas nem tudo são flores.
Abreu larga a garrafa na mesa e se estica para frente.
— A Amazônia não é um ambiente muito amigável para peles tão delicadas.
Francisco ouve com atenção e fica receoso.
— Acha que eu deveria ter cuidado?
— Todos devem. Ainda mais sendo hóspede do patrão.
— Patrão?
— É como os cabocos chamam Lindemberg, o chefe da vila. Um sujeito poderoso que gosta de exercer seu poder. Deve estar com medo de ser cobrado.
— Cobrado?
Abreu suspira, olha para o alto e diz:
— Meu caro professor. Por acaso, nesses anos todos, já ouviu falar da maldição?
Francisco apenas comprime os lábios e nega com a cabeça.