O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

I. Dia de São José

Amazônia, 1925

 No fundo escuro do lago do Limão, os botos, estáticos, observam as ondas sonoras que vibram nas águas, formando círculos sensoriais. O líder da escola, o boto maior e mais claro emerge decidido a localizar a origem destes tum-tum-tuns. Logo fica claro que se trata de um arraial, desses típicos de vilas interioranas.

A pequena vila de Xavier renova a tradição do povo da floresta, com bandeirinhas penduradas, fogueiras, balões, fogos de artifício e barracas de comida. As pessoas festejam o santo alheias à chuva amazônica que se anuncia, sempre torrencial, devastadora, com nuvens sombrias, escuras como breu. A igreja pequena, pintada de branco, com detalhes em azul celeste, tem do lado de dentro apenas as imagens dos santos – e o silêncio do divino.

Ribeirinhos se divertem às margens gramadas da orla sagrada do lago. Um trio de músicos anima a festa. Caboclos, seringueiros, negros e índios dançam e bebem. Sem que os brincantes percebam, as águas turvas se agitam. Girando e saltando, inquietos e buliçosos, os botos provocam redemoinhos com movimentos circulares e velozes.

A selva está repleta de mistérios. Mortes e suicídios alimentam o imaginário do caboclo e contribuem para valorizar e divulgar as lendas. Num universo regido por leis imponderáveis, basta alguém cair na água e desaparecer que logo circulam versões sobre artimanhas de uma cobra-grande ou yara. Onças viram mula-sem-cabeça – e se alguém se perde nas trilhas é obra do curupira.

Um homem, com seus quarenta anos, de paletó e chapéu branco, se destaca dos demais no folguedo pelo encanto que provoca. A dança sensual e sedutora, quase diante do andor com a imagem de São José, provoca reações diferentes. Maridos torcem a boca. As mulheres deliram com o charme e o magnetismo daquele forasteiro.

Crianças correm no entorno. O pequeno Jonas, preto de olhos verdes, se diverte na companhia de Telma, uma linda garotinha de mistura cabocla, de cabelos longos e negros, com roupas simples e surradas.

À aproximação de Jonas das outras crianças, mães resgatam filhos instantaneamente. Olham como se o menino tivesse uma doença contagiosa. Do que será que elas têm medo? Ou seria apenas preconceito? Telma é a única criança que permanece ao lado dele – até Helena, a mãe dela, buscá-la pelo braço para junto da família. Helena é mais complacente e parece compreender o medo daquelas mães em relação a Jonas, mais conhecido como o filho do boto.  Sorrindo sofridamente, passa pelos mesmos conflitos que Diva, amenizados pela felicidade de Telma ter nascido mulher, num ambiente tão nocivo para meninas. Apenas mais um dos paradoxos deste lugar.

Ao lado da mesa dos pais de Telma, um grupo de cientistas bebe e come à vontade. Várias línguas são ouvidas, francês, italiano, alemão, inglês, japonês. Telma olha para o grupo de gringos por um tempo. Observa a barriga de uma loira grávida de oito meses que fala francês com outros cientistas.

Sem Telma, parceira de brincadeiras, Jonas olha para os lados em busca de um novo amigo. Bem perto está dona Adélia, cheia de pulseiras e cordões de ouro, com um bolo de dinheiro nas mãos, pagando quitutes, sucos, bolos e salgados para sua filha Janaína. Meninazinha de dez anos, cabelos negros, compridos, aparentemente adoentada, ela olha para Jonas como se pedisse socorro e, em seguida, vomita tudo. Adélia arrasta Janaína pelo braço sem cuidados ou carinho. A menina leva duas palmadas da mãe, que caminha reclamando da vida, amargurada. 

Dona Diva, meio negra, meio índia, chega ao lado de Jonas com seu olhar de ternura e afeto. Ela encara todas as mães do local. Jonas dá a mão para Diva e os dois caminham na direção da igreja, cruzando com o casal dançarino na porta adornada de flores.

 

Diva observa a dança carregada de sensualidade. Os corpos do homem de chapéu branco e da mulher estremecem ao menor contato, serpenteando, suando, olho no olho, rosto com rosto, carne com carne.

Jonas acha interessante. O homem cruza o olhar com o do garoto por milésimos de segundos e deixa escapar um sorriso. O menino retribui e Diva, percebendo, se benze e arrasta Jonas rumo ao altar da igreja.

O padre se aproxima de Jonas e Diva e olha para o casal dançarino. A reprovação é clara. Ele balança a cabeça negativamente, enquanto entrega duas velas a Diva e põe a mão na cabeça de Jonas.

A lua ilumina o lago, espelhando seu reflexo nas águas. Os botos pulam em alvoroço, mergulham e sobem, rodam, em desassossego chamativo e assustador.

Miro e Carlitos estão em uma mesa próxima ao casal que dança. As mulheres que os acompanham estão enfeitiçadas. Elas se ajeitam, mexem nos cabelos. Outros casais sofrem a mesma influência do homem de branco.  Algumas mulheres se abanam, mordem os lábios. No fundo dos olhos de cada uma, nas pupilas dilatadas, o mesmo vazio. Os olhares observadores masculinos traduzem um sentimento comum. Todos já sabem que se trata mesmo de um boto.

 

Os cochichos revelam más intenções e os homens se organizam para surpreender o forasteiro que domina a cena da festa. Alguns se armam com gargalos de garrafa, outros juntam paus e pedras, e o mais abusado, um “caboco entroncado”, quase um “toco de amarrar onça”, avança para cima do casal e acerta um soco no rosto do rapaz, fazendo o chapéu branco voar longe. A mulher se assusta. O furo na cabeça fica visível. O boto foi descoberto e é hora de correr.

As mulheres saem do encantamento e ficam desnorteadas, assustadas. O boto enfrenta a fúria dos homens e sofre golpes de cacos de garrafa, pauladas e pedradas. Ele sangra. Os movimentos leves, sensíveis e voluptuosos dão lugar ao desalinho causado por dores e desconforto e uma agilidade diferente dos demais.

Um dos poucos abastados da região, Abreu junta o chapéu branco e o coloca na cabeça. Na barraca de bebidas, no topo da rampa que desce para a beira do lago, estão os coronéis e seus capatazes. Entre eles está Lindemberg e o seu patrão, seu Pacheco, todos bebendo pinga e debochando uns dos outros.

Pacheco vê o boto fugindo da festa, sangrando, rasgado pelas agressões, perseguido. O patrão saca seu revólver da cintura, empunha a arma e faz a mira e dispara contra as costas do boto. O primeiro tiro acerta o ombro. O boto não para de correr. O segundo acerta o pulmão esquerdo. Os passos do boto diminuem. O terceiro acerta o fígado. Os tiros vão marcando o paletó branco de vermelho, enquanto o rapaz se esforça para dar pequenos passos em direção ao lago.

Seis tiros derrubam o estranho a poucos centímetros da água. O corpo tomba para a frente, os dedos das mãos dedilham o lago. A multidão se aglomera na retaguarda do coronel Pacheco. As mulheres se desesperam e gritam. Pacheco caminha determinado na direção do boto. Recarrega o revólver, fecha o tambor e aponta para a cabeça do rapaz. Miro e Carlitos controlam as mulheres, que agora gritam desesperadas para Pacheco ter piedade. O patrão ri das mulheres e o boto se aproveita do vacilo.

O animal, que também é gente, se joga no lago rapidamente e o patrão, com ódio no olhar, dispara seu revólver fazendo mira na água. Lindemberg se aproxima e também atira. Por um instante, o silêncio e a fumaça das armas tomam conta do ambiente.

Dona Diva, agarrada com seu terço, chora e reza baixinho, olhando para o lago. Em choque, Jonas observa as pessoas e suas reações, não faz nenhuma ideia do que provocou toda aquela situação, nem que aquele rapaz violentado poderia ser seu pai. A loira cientista grita de dor e reage com fúria, se soltando das mãos que a amparavam. Uma luz, feito um raio, explode nesse momento no meio da floresta.

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