O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XXVI. É o boto!

A cheia entrou pela noite. A pequena vila de Xavier está praticamente debaixo d’água. Sem dormir, Telma procura uma saída para toda essa situação

em que o professor se encontra. A casa está com o assoalho alagado, assim como o quintal. Com o coração saltando pela boca, ela atravessa a rua, já cheia de pequenas corredeiras, e sai em busca de Francisco.

Na trilha, subindo a colina, Telma encontra Jaílson em estado de choque, o olhar transido, como se estivesse com a alma em desespero. Telma, percebendo, tenta animá-lo:

— Precisamos conversar…

Ela espera que ele diga outra coisa, mas suas palavras são reveladoras e chocantes.

— Tu sabias que o professor era o responsável por todos esses crimes?

— Sabia. Quero dizer: soube recentemente. Mas desconfiava que havia alguma coisa esquisita com ele. Pra mim, era só por ser casado!

O delegado muda a expressão e pergunta, com ar sombrio, por ter descoberto algo tarde demais:

— Ele é viúvo. Sabia que ele matou a mulher e o amante há anos, dentro da própria casa?

Telma deixa transparecer toda a dor da descoberta tardia, e responde:

— Isso eu não sabia.

O delegado não liga mais para nada. Sua vontade de viver desapareceu e, dentro dele, toda a situação despertou uma grande frustração por seus imperdoáveis enganos.

— Falei com a capital. Um amigo de São Paulo o mandou pra cá para Xavier para ter descanso, pois esse professor não aguentaria dar as aulas na universidade de tão perturbado.

Jaílson pega no bolso da camisa um papel que foi molhado, mas que ainda está legível.

— Veja o que está escrito neste papel qu’eu encontrei boiando ao lado do portão da casa dele ontem. Fui averiguar e descobri outras coisas muito cabeludas. Sabia que tem um médico que cuida de doentes da cabeça aqui na vila? Veio de São Paulo e tá à custa dos franceses. Parece que os gringos já sabiam de coisas sobre o professor que a gente nem imaginava.

Telma lê vorazmente.

Departamento de Psiquiatria:

Introdução: O manejo do paciente portador de esquizofrenia refratária não está bem estabelecido na literatura. Descrevemos as estratégias terapêuticas utilizadas em um paciente internado em nossa enfermaria. Relato de Caso: FB, sexo masculino, 38 anos, portador de esquizofrenia há seis anos, com evolução desfavorável da doença (duas internações psiquiátricas prévias e uma tentativa de suicídio). Apresentava quadro caracterizado por alucinações auditivas, delírios paranoides, místicos, grandiosos, excitabilidade, auto/hétero-agressividade, embotamento afetivo, retraimento social e contato pobre, sem remissão dos sintomas positivos. Já utilizou haloperidol, clorpromazina, quetiapina e risperidona em doses adequadas, com melhora parcial, apresentando como efeitos colaterais discinesia tardia e sintomas extrapiramidais. Com o uso de lítio, houve reversão da neutropenia, e foi possível aumentar a clozapina; paciente apresentando melhora substancial dos sintomas positivos.

Conclusão do Dr R. S. Amorim: Associação de clozapina com amisulprida ou uso de lítio na neutropenia por clozapina são estratégias pouco praticadas em nosso meio e que se demonstraram úteis neste paciente.

 

Telma se sente desnorteada, sem saber o que fazer. Não consegue controlar sua preocupação com o professor, embora já tenha tido todas as provas de que se trata de um criminoso bárbaro.

Jaílson senta-se numa pedra e abaixa a cabeça. A paixão assumida da sua ex por um psicopata assassino o atira em um mar de tristeza. Amargurado, vira-se para Telma e confessa um crime tão medonho quanto os que o mestre cometeu. Está muito arrependido por ter feito o que fez com Jonas, e revela o engano à amada.

— Não precisa se desculpar, Telma, nada se compara ao meu equívoco. Eu, sim, me precipitei, tu não fizeste nada comparado a mim…

O delegado lembra do acontecido na casa do mestre no dia do rápido interrogatório. Relata detalhes da sua chegada à delegacia, completamente transtornado, onde o filho do boto estava preso. Naquele momento, na cabeça de Jaílson, tudo fazia sentido, e ele pensava nos motivos que teriam levado Jonas a querer matar o patrão e, ainda, incriminar o professor.

Dentro da cela, Jonas tentou fugir por uma grade aberta, mas Oliveira e o soldado o seguraram com força já na recepção da delegacia. Os homens passaram a socá-lo ali mesmo, sem medo de serem flagrados.

— Foi assim, filho de boto dos infernos? Foi assim que tu bateu no professor?

Jonas se defendia.

— Eu posso ter dado um cacete nele, mas não matei o patrão. Eu não matei ninguém, delegado. Foi o professor!

Apanhando muito, Jonas insiste na defesa própria. Jaílson o joga para fora da delegacia pela saída dos fundos e, em seguida, todos se dirigem para um terreno baldio. O delegado, Oliveira e o soldado se posicionam em linha, com as armas em punho. Jaílson ordena que Jonas corra. O filho do boto implora:

— Não me mata, delegado. Tu me conhece desde moleque, mano, tu ia comer lá em casa, lembra?

O delegado lembra muito bem desses episódios. Mas a falta do benefício da dúvida, negado sempre por seres humanos possuídos pela raiva e detentores do poder, acarreta resultados desastrosos: inocentes pagam por crimes que não cometeram. Jaílson diz:

— Levanta e corre, desgraçado, salva a tua vida. É a tua última chance. Se tu não correr, espoco tua cabeça aqui mesmo. Só não faço isso a sangue-frio porque conheço muito bem a tua mãe e ela não merece o filho que teve. Eu te vi crescer, cabra, tens razão quanto a isso, mas agora eu vou te ver morrer. Corre, desgraçado, já mandei!

Gritando, Jaílson assusta o rapaz. Com três revólveres apontados para as suas costas, Jonas se levanta e corre o mais rápido que pode, em zigue-zague, a morte estourando atrás dele. Na mata fechada, é atingido por onze tiros, antes de cair morto na terra preta.

Telma fica estarrecida. Em silêncio absoluto, senta-se ao lado do delegado. Analisa todos os problemas e sente um arrepio ao perceber que não vai poder contar nada a ninguém sobre a verdadeira identidade do pai da criança que ela carrega. Por outro lado, ela não pretende criar mais um ser estigmatizado, mais um filho de boto e, com o instinto protetor próprio das mães, sente que só quer resguardar a cria. Sabe que não poderá depender de homem algum e que terá de

ser como sempre foi: independente e guerreira, mulher que só precisou de homem nessa vida para gerar outra no seu ventre. Exatamente como as antigas e verdadeiras guerreiras amazonas da região.

As águas não param de subir. Os pés dela ficam molhados e, de repente, a

moça desperta, querendo agilizar a fuga.

— Vamos para as colinas, rápido, essa ilha tá afundando cada vez mais.

Meio sem vontade e deprimido, o delegado quer mais é que o mundo se acabe.

— Acho que de hoje essa vila não passa.

Telma vai até a charrete:

— Precisamos encontrar o professor, ele tá correndo risco por aí.

Em razão do estado psicológico de perturbação em que foi encontrado depois do assassinato da mulher, anos atrás, Francisco permaneceu algum tempo internado na Seção de Artes Plásticas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo. O propósito básico da escola é a recuperação e a reintegração dos pacientes na sociedade por meio do desenvolvimento de suas aptidões artísticas. Contudo, antes mesmo da emissão de um laudo atestando a sua cura completa, o professor foi solto, tendo prevalecido, em seu benefício, a tese de legítima defesa da honra e a constatação de um desequilíbrio emocional, supostamente “momentâneo”.

Por um mecanismo patológico, ele escondeu essa verdade de si mesmo, acreditando inclusive que a mulher ainda estava viva. Depois do acidente com a canoa, o quadro piorou de vez. Francisco liberou toda sua fúria e sexualidade reprimidas, fazendo várias vítimas.

No porão do Pombal de Xavier, onde se encontra acorrentado, ouve as palavras do antigo médico, doutor Amorim, o único que se opôs à alta. O médico sabia que o professor não estava preparado para encarar um mundo real, ainda mais um mundo surreal da vila, cheia de encantos e magia. Jean, com o seu sotaque francês, arrisca um diálogo com o doutor:

— A Amazônia já é um perigo para as mentes sãs, imagina para as mentes perturbadas.

Educadamente, o médico explica o tratamento a que o professor foi submetido no hospital psiquiátrico. Coloca novamente o quadro no cavalete e conta como foi pintado, recordando, aos poucos, o dia da internação, e a forma como, sob os efeitos de remédios poderosíssimos, trabalhando com tintas e telas, o professor se mostrou um artista.

— A maior dificuldade que tivemos foi conscientizá-lo da doença. Tenho de dizer que o trabalho presenciado nessa noite com a dona Maria deixou-me impressionado. As ervas lhe mostraram toda a extensão da sua patologia com muito mais eficácia que os remédios do hospital. Agora, só precisamos colocá-lo em um lugar seguro, para reiniciarmos o tratamento.

Nesse momento, ouvem-se murmúrios ao redor do belo casario de madeira: é o povo que cerca o Pombal, exigindo a cabeça do professor. A verdade sobre o mestre se espalhou. As pessoas batem nas paredes e quebram com suas armas as vidraças das janelas trazidas da Europa pelos moradores e donos do Pombal. Katerine, sempre muito ativa e envolvida com a população de Xavier, resolve abrir a porta para o povo entrar. Vingativa, não sabe quais serão as consequências do seu ato. Por que protegeria um assassino frio e cruel? Além de abrir a porta, ela aponta o caminho do porão:

— É no porão que eles estão. Não façam mal ao meu marido, ele está do lado de vocês.

Homens armados de facões e machados invadem o local. O médico avança contra a turba, para impedir a barbárie. Um dos homens puxa uma peixeira e acerta duas estocadas na barriga do médico, que cai ali mesmo e estrebucha até morrer. Jean, assustado com a violência, movimenta-se para intervir, mas leva uma paulada na cabeça e desaba ao lado do cadáver.

Francisco é arrancado das amarras e correntes e levado para fora do Pombal, quase carregado. No caminho, apanha bastante na cabeça e nas costas até chegar ao belo gramado, já completamente encharcado pelas águas do rio. O povo, do lado de fora à espera do assassino, o cerca decidido a trucidá-lo.  

Logo aparecem outras pessoas que também já o viram andando de madrugada de paletó branco e chapéu. Outros dizem tê-lo visto em uma canoa, sempre vestido de branco, enquanto algumas pessoas apenas fogem da cheia absurda.

 

 

 

Agora o professor realmente acredita ser o autor de todas as atrocidades, do homicídio da própria mulher e do amante, perfurados pelo taco de sinuca quebrado, de Abreu, Amelinha, Lindemberg e de Messias. Arrepende-se, tem culpa. Atacado, ergue-se para escapar. Corre, mas o rio está bem na frente. Não há mais para onde fugir.

A saída pelo rio seria uma atitude normal de todos os botos em fuga. Não é o caso de Francisco.

Cercado imediatamente pelos homens armados, o professor sabe que chegou sua hora. O medo de morrer não o perturba mais, e seus olhos não reagem

à violência. Um velho pescador exige vingança. Fala da maldição anunciada para a vila, anos atrás. Ataca e acerta uma facada na genitália de Francisco, que cai de joelhos, sangrando. O mestre olha em volta, completamente entregue ao destino.

Os pescadores não sentem pena. Um grita:

— Vamos acabar logo com isso!

Em seguida, o homem saca sua arma da cintura para atirar na cabeça do professor, que está acuado e atordoado com as cenas que saltam aos seus olhos e aguarda o impacto do projétil no crânio. Ouve-se um disparo que, para a surpresa de todos, foi dado para cima.

O delegado chega com Telma para salvar o professor pela segunda vez.

— Pode parar! Já morreu muita gente por aqui. Cadê o doutor Amorim? Alguém viu os franceses? Vocês precisam cuidar dos seus filhos, coloquem eles nos barcos e saiam dessa colina agora.

O delegado atinge o ponto fraco de todos. Os revoltosos silenciam. Oliveira

avisa que os barcos estão prontos e que é hora de zarpar, mas o delegado manda uma equipe procurar o casal de franceses e o doutor Amorim no Pombal de Xavier.

— Tragam eles aqui, quero saber o que está acontecendo.

Os soldados e Oliveira advertem que não há tempo para buscas. Na outra margem do delta as praias ainda estão visíveis. O tom mais claro da areia pode ser observado com perfeita nitidez. Como pode ser? As pessoas concluem que Xavier está mesmo afundando. Não tem nada a ver com a cheia do rio ou com a lenda da cobra grande, mas sim com o poder da natureza, que faz com que todos se sintam como formigas alucinadas.

Os habitantes de Xavier fogem como medo da lei. Não a dos homens ou a do delegado, mas a dos deuses da floresta querendo de volta o que não foi cuidado. Para salvarem suas vidas acima de tudo, correm para os barcos que estão chegando no que restou da colina, no que ainda sobra de Xavier.

No meio da confusão, Oliveira e os soldados desobedecem às ordens do chefe e correm em outro sentido, para pegar os barcos deixados do outro lado da colina e tentar encontrar algum morador ilhado. O delegado compreende.

— Podem ir, salvem suas vidas e de quem mais puderem, deixem qu’eu mesmo vou cuidar dos franceses e deste doutorzinho.

Telma olha com ternura para o professor prostrado, que sangra pelas calças, com a água subindo até às suas coxas. Com seus devaneios alucinantes, Francisco não vê mais ninguém. Está de volta ao mundo que era só dele, fechado e macabro, quando, de repente, percebe o boto tucuxi, animal salvador da vida dele, nadando nas proximidades. Exibe as nadadeiras de forma diferente, como se estivesse triste pelo homem que não soube aproveitar a “segunda chance” e sair com vida das águas amazônicas. O boto salta três vezes e mergulha, sumindo no fundo do rio.

Telma chora ao ver seu homem destruído pela loucura. O amor que ela sente é a razão que a leva a deixá-lo ali. Ela sabe que, por baixo daquela personalidade frágil e fechada, pela qual ela se apaixonou, existe uma outra, esta sim muito mais forte, perigosa, dominadora e violenta ao extremo.

O conflito atormenta a sua cabeça de mulher apaixonada, dividida entre deixá-lo e salvar aquele que foi seu grande amor. E assim, sob um impulso novo, encara a sua missão. Segurando a espingarda com firmeza, mira o alvo bem na cabeça do assassino. Seus olhos se enchem de lágrimas e seu dedo, comprimindo o gatilho, começa a transpirar.

O mestre, ainda em surto, vê apenas Gilmar ao seu lado, infernizando-o. De joelhos, ouve o boto pela última vez:

— Se tu fosses um boto igualzinho a mim, saberias sair facilmente dessa situação.

Gilmar olha para o mestre. O boto pode ficar no comando para sempre, assumindo as rédeas da mente perturbada de Francisco.

Com a arma apontada para a cabeça de Francisco, Telma sente uma forte contração no útero, que a deixa sem ar, tirando o alvo por um instante da mira. A dor é aguda, mas passa rapidamente. Serve apenas para deixá-la hesitante na hora de colocar um fim à vida do cobrador da Amazônia.

Nesse momento, o professor fecha os olhos e se deixa levar pela força das águas, que invade de vez a colina, e arrasta para a morte todos os habitantes que não conseguiram um barco. Na parte alta, mais segura, Telma observa o rio que toma os corpos xavienses para si.

O delegado também está ilhado no lado oeste da colina, a poucos metros do Pombal, procurando pelo casal. Sabe que não haverá resgate e vê a água saindo

por baixo da porta. Ao abri-la, encontra os corpos brancos e nus e logo identifica os estrangeiros, afogados dentro do próprio lar. Para o delegado, Jean e Katerine também foram punidos por Tupã.

As águas começam a entrar na cozinha do Pombal, indicando que já é hora de partir. O delegado foge. Em frente à trilha, descobre que não há mais para onde ir. Como punição pela culpa que ainda carrega, Jaílson entrega-se para a morte, após receber o impacto de uma onda que o arrasta para o fundo do leitoso rio.

Os pescadores da vila do seu Ayrão chegam em barcos para resgatar os sobreviventes que ainda conseguem boiar. Olegário, Oliveira e outras pessoas guiam os barcos para o único lugar visível. Na confusão do embarque e, diante do aparecimento de um rebojo, muitos corpos acabam por afundar. No barco de Oliveira estão dona Maria, Carlitos e Miro. Telma, ilhada nas pedras grandes, é avistada por eles, que guiam rapidamente o barco na direção dela.

A morena, que morou ao lado do verdadeiro boto existente nessa vila nos últimos cem anos, é socorrida por Carlitos, que a ajuda a subir no barco, enquanto Miro, com a sua perna direita, segura o peso da embarcação, apoiando-se nas pedras para não deixar o casco bater.

A torre do Pombal, com seu pináculo fálico e cimeira ornamentada, é a última coisa a desaparecer nas turvas águas do Madeira que, desse modo, conduzem Xavier ao seu destino trágico, encerrando sua história de forma impiedosa. Uma tragédia mitológica em pleno Delta Amazônico, cuja corrente violenta e implacável transforma tudo em uma imensa bacia hidrográfica.

Nada explica o fenômeno da submersão da vila e de seus habitantes. Terá sido castigo de Tupã, como pensava o delegado? Não era aquela a única vila a cultivar uma lenda de cobra grande adormecida nos subterrâneos alagados?

No barco de resgate, Oliveira observa o rio, e dona Maria aproxima-se de Miro, que está comentando com Carlitos sobre a maldição do professor.

— Ele enganou a todos nós, diz Carlitos.

Dona Maria se mete na conversa.

— Mas eu disse que ele era doente, não disse? A mim, nunca enganou! Messias não me ouviu e pagou com a vida. Nunca acreditaram em mim mesmo!

Na ponta da embarcação, Telma acaricia a barriga. Sofre, mas reúne forças para recomeçar, num lugar novo. Está certa de que jamais precisará de qualquer homem para conseguir vencer as adversidades da vida. Sabe que ser mãe solteira de um filho de boto não será fácil, mas antes de se acovardar percebe alguns botos que acompanham a embarcação como fiéis batedores da floresta. Telma sorri com um ar de esperança.

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