O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XXV. O ritual

A charrete sobe a colina em uma velocidade inacreditável, guiada por Telma com chibatadas desferidas no lombo de um pangaré. No alto, local onde havia deixado o mestre momentos antes, sua sensibilidade indica a ocorrência de alguma coisa estranha. Ela nota rastros de briga e encontra sangue próximo ao lenço de Francisco, que ficou no chão desde o momento do desmaio provocado pela paulada de Gilmar. Tomada pelo desespero, ela faz buscas nas redondezas, em vão.

A população de Xavier está se mudando para o alto da colina, como formigas que deslocam o formigueiro para tentar sobreviver. Elas armam acampamento antes do anoitecer. É a hora da malária, e as fogueiras começam a ser acesas. As labaredas iluminam o topo e as folhas verdes são aspergidas com ervas que ajudam a defumar o ambiente, espantando os carapanãs.

Sozinha, Telma resolve voltar para a vila, ou melhor, para o que restou dela. Depois de perambular e checar pessoalmente as áreas alagadas, ela depara com a sua casa quase toda no fundo. A moradia do professor, situada em um local mais elevado, ainda está seca, embora o terreno esteja completamente alagado. A imagem, com as cores do Apocalipse, assombra.

À procura do professor, Telma atravessa o charco até a casa. Solitária, relembra os momentos de desejo e sexo ali vividos com tamanha intensidade, no banheiro, no quarto e até na cozinha. Afaga o ventre e revela um pensamento materno. Ela está mesmo esperando um filho de Francisco e se vê perdida nas suas lembranças.

A noite cai, e as luzes não penetram mais os buracos do velho porão. Os sons da floresta são bem diferentes. Alguém entra no porão, se aproxima com uma lamparina, o rosto coberto por um capuz.

— O senhor sabe o que eu vim fazer aqui? Não vou lhe fazer mal, vim para prepará-lo. Bebe esse chá que vai acalmá-lo.

O homem põe na boca do professor a xícara com a dose certa do chá natural. Amarrado, ele não discute e bebe o líquido de uma só vez. O homem vira de costas e se retira.

O professor fica mais uma vez sozinho, no escuro, com seus pensamentos sombrios. A luz da lamparina ainda é vista através da porta fechada, mas logo a escuridão toma conta do ambiente.

Em poucos minutos, a erva tranquilizante faz efeito, e o mestre se entrega a um sonho conturbado, com muitas imagens distorcidas de pessoas vagando. Acorda depois de algum tempo, suado e assustado. Não está mais amarrado no porão e, sim, no meio de uma clareira na floresta. No grande centro de areia branca, existe um tronco de árvore imitando um totem, onde Francisco está amarrado, com as suas costas bem juntas ao poste e as duas mãos para trás, abraçando o tronco inversamente, com o rosto voltado para frente e com um funil de palha, tipo tipiti, preso à sua boca.

Há pessoas em volta. O professor geme e tenta falar, mas com a língua presa embaixo do funil fica difícil. Não acredita que esteja participando de um ritual, embora seja o convidado principal.

Os troncos e galhos armados simetricamente diante dele são acesos. Dona Maria, a curandeira, segurando nas mãos uma tocha feita pelos mucurararas há mais de quatrocentos anos, encosta no pireu, acendendo-o uniformemente. Assim inicia-se o trabalho de purificação e revelação espiritual.

Uma música é tocada por flautistas e interpretada por uma das garotas presentes, graduada. Todos acompanham a melodia. Depois de repousar a tocha no arco de aço, dona Maria pega com cuidado a cuia cheia de chá de vegetal, olha para os presentes e aproxima-se de Francisco, entornando, sem maiores explicações, todo o precioso produto natural amazônico no funil de palha.

A combinação de cipós e folhas de alto teor alucinógeno introduzida goela abaixo do professor não consegue descer direito e a substância é repelida energicamente pelo corpo, por meio de espantosas descargas de vômito. O processo de limpeza começou.

Após alguns minutos de desespero, causados pela incessante lavagem estomacal, o mestre está pronto para receber a segunda dose da substância. As pessoas cantam e dançam músicas em tupi-guarani, transmitidas ao longo de gerações, assim como a receita e a preparação do santo chá de ervas, que chega a

durar duas semanas para ficar bem apurado.

Depois de recolocar o funil e despejar a segunda dose na goela do mestre, sem nojo da substância cheia de resíduo estomacal, dona Maria, para alívio dele, retira o funil da sua boca novamente. Aos poucos, Francisco começa a identificar algumas pessoas. Para sua maior surpresa, Jean e Katerine são os primeiros a serem reconhecidos. O professor observa o jeito deles de dançar e nota uma semelhança entre os movimentos do casal de franceses e os do casal da colina, percebendo que até a sandália é a mesma que viu nos pés da sequestradora, o que o faz crer que os estrangeiros o tenham levado desmaiado para aquele lugar.

Em seguida, como que num relance, ele lembra da noite em que voltava do jantar na casa de Lindemberg, e percebeu que estava sendo seguido por um casal que o deixou muito assustado. Estava sendo observado havia tempo.

Dona Maria, velha rezadeira conhecida em Xavier, as duas italianas e mais algumas pessoas que ele reconhece também fazem parte do ritual. No entanto, a maioria era composta por pessoas comuns.

Após alguns minutos, Francisco sente suas energias se revigorarem e pede para acabarem logo com tudo aquilo. Dona Maria se dirige a um homem ao lado dela e sussurra:

— Tá começando, doutor. O senhor vai ver que não existe cura melhor que essa.

— Espero que a senhora tenha razão, dona Maria.

A sábia senhora conclui seu raciocínio com um dilema xaviense do tempo dos mucurararas.

— Até mesmo para fazer a manipuera é preciso tratar a terra para realizar a maipoca!

O doutor não entende uma única sílaba das palavras proferidas pela velha cabocla e, nesse momento, gostaria de ter um simples dicionário de palavras oriundas do dialeto indígena. Porém, logo desvia a sua atenção para o professor, que está mesmo entrando numa alucinação.

A revelação vem com o tempo, as nuvens começam a mudar de cor, o tom roxo do açaí se faz mais nítido e os relâmpagos iluminam, com maravilhosa fúria, aquele céu escurecido. Turbilhões se formam do nada e meteoros despencam na floresta, que chora pela vegetação incendiada ao seu redor. Francisco chega a crer que algumas pessoas estejam correndo, apavoradas pela manifestação simultânea de tantos fenômenos naturais.

 

De uma das crateras dos meteoros sai uma criança. O mestre, ao olhar com mais atenção, percebe tratar-se dele mesmo, ainda na idade de oito anos. A mãe o leva até a mesa da cozinha para comer uns biscoitos com chocolate quente. O menino fica sentado no banquinho, enquanto a mãe prepara o lanche com determinação e o faz comer imediatamente. O pequeno Francisco degusta seus biscoitos com o chocolate quente, vendo a mãe preparar um café forte, aliás, muito mais que forte, diria até mortalmente forte. Ela abre um frasco de veneno de rato e despeja quase todas as bolinhas dentro de uma garrafa térmica. Em seguida, despeja o café fervendo e tampa. Esconde o veneno e serve uma xícara de café ao marido, que adentra na mesma hora na cozinha, todo cheio de charme.

Bonartério bebe o café envenenado e começa a passar mal, sentindo seu corpo queimar por inteiro, tomado por dores insuportáveis. O velho pai de Francisco cai e morre, tremendo dos pés à cabeça no chão da cozinha. A mãe derrama na pia o café da garrafa que sobrou e abre a torneira, lavando a garrafa e limpando as provas do crime.

— Meu filho, você vai ver que a nossa vida vai ser bem melhor daqui pra frente, sem esse homem impuro dentro da nossa casa. Vá pegar nossos terços e vamos rezar para a alma do seu pai. Ele era um pecador e não sabia o que fazia, mas agora acabou. Ele está com Deus.

Depois de pegar, obedientemente, os terços, a frágil criança inicia a oração e, durante a reza, olha para o pai que ainda está ali, no chão da cozinha. Francisco começa a sentir uma tremenda falta de ar e, de uma hora pra outra, para de respirar completamente, ficando roxo. Com muita dificuldade, diz à mãe que não está conseguindo “puxar o ar”. Sem demonstrar qualquer abalo ou inquietação, a mãe retruca, em um tom seco:

— Reza com fé que passa, filho!

A partir daí, os meteoros recomeçam a despencar dos céus apocalípticos de Xavier. O professor puxa o ar com força e respira fundo, como se tentasse recuperar todo o oxigênio perdido quando menino. Percebe agora o mal causado pela loucura da mãe e finalmente descobre os verdadeiros motivos que desencadearam essas crises.

Tudo tinha sido tão intensamente presenciado e jamais revelado a qualquer outro ser humano, durante todos esses anos de segredos tão bem guardados, que nem mesmo ele conseguia lembrar de tais fatos. Agora, sob o efeito das ervas no sistema nervoso central, as coisas ficam bem diferentes. As pessoas que dançavam se transformam nas vítimas do boto que, inexplicavelmente, sai de dentro da fogueira, representando os males do mundo. Com violência, a entidade maléfica, e ao mesmo tempo vingadora, viola mulheres e espanca pedófilos na frente de todos, inclusive do mestre, colorindo o areal de sangue. O assassino se aproxima do professor, que ainda está amarrado, e diz:

— O senhor não lembra da visita que fez na casa do patrão na madrugada sangrenta?

Francisco se assusta ao ver Gilmar ali tão perto dele. Amarrado no tronco, começa a ver a cena bem na sua frente, como se fosse projetada sobre o pireu aceso por dona Maria. Tonto e muito fraco, consegue se ver invadindo o casarão e sendo vítima da paulada na cabeça que, agora, sabe quem desferiu. Finalmente, o segredo vem à tona, com a identificação do agressor: o próprio Lindemberg, o dono da casa invadida.

Retornando à cena do crime, o mestre recorda que tombou inconsciente no chão do casarão por alguns segundos. Logo chegam as mulheres da casa.

— Mas esse aí é o professor, diz Janaína, como se o marido não soubesse.

Ao que o chefe retruca:

— Quem ele é eu sei, só não sei o que ele veio fazer aqui.

Irritado com a situação, ouve a única filha dizendo:

— Coitadinho dele, mãe.

O patrão fica com a pulga atrás da orelha:

— Vocês duas têm alguma coisa a ver com essa história? O que esse cabra veio fazer aqui? Invade a casa, sorrateiramente… De quem foi a ideia?

O trauma da traição o faz delirar.

Do nada, Gilmar aparece e ataca ferozmente o dono do recinto, primeiro com socos e chutes. Enquanto isso, assustadas e sem reconhecer o invasor, Irina e Janaína correm para pedir ajuda. As duas escapam, em pânico.

Gilmar domina Lindemberg e o perfura com o cristal em forma de bastão pontiagudo, o mesmo que estava na sala no dia do jantar.

Gilmar pergunta se o patrão ainda não se fartou de usar a lenda do boto para enganar um marido, assim como toda a vila de Xavier. E prossegue:

— Ainda por cima violentou meninas, as cunhantãs…

Gilmar, aos brados, afirma que o chefe da vila afogou a mulher do Messias no lago do Tucumã. O dono do casarão, assustado e apavorado com a força daquele homem, nega tudo:

— Eu não matei ninguém, isso é mentira. Quem foi que disse?

Chorando, enquanto sente aquele bastão de cristal afastando suas costelas e dilacerando a carne, Lindemberg implora pela vida. O boto não se importa com as palavras de súplica, até porque bem sabe que a mulher realmente cometeu suicídio por afogamento, e vai cravando o bastão de cristal cada vez mais fundo:

— Não quero nem saber, vai pagar por isso assim mesmo, sujo, podre, imbecil!

Finalmente, acabando com a tortura, Gilmar retira o bastão cravado nas costelas de Lindemberg e perfura-o várias vezes no peito e no curto pescoço caboclo. O sangue jorra e o patrão de tanto poder, senhor do céu e da terra em Xavier, cai morto aos pés do boto.

O assassino delira, não liga para nada, até Jonas aparecer na frente da casa e começar a chamar por Irina e Janaína. Gilmar fica irritado pelo aparecimento do intruso e se esconde atrás da porta, antes de abri-la.

O filho do boto invade a casa de uma vez e depara com a cena. Naquela fração de segundos, surge Gilmar, com uma escultura pequena de mármore nas mãos. Sai rapidamente de trás da porta e acerta em cheio a cabeça do rapaz. Jonas sucumbe na poça de sangue.

Olhando friamente para o mestre, ainda desmaiado, o boto o coloca nas costas, sem precisar de muito esforço para carregá-lo. O professor começa a perceber algumas novidades e, assustado com essas novas informações, no meio do areal, amarrado no tronco, olha para Gilmar e ainda consegue pronunciar com alguma dificuldade sua questão:

— Foi você quem matou aquelas pessoas? Não foi o Jonas!

O boto pede calma para não haver mais desgaste:

— Não tire conclusões apressadas.

Com um estalar dos dedos, Gilmar faz as imagens se transformarem. O mestre vê a cena do desaparecimento de Messias. O caseiro vai tomar banho na beira do rio, atento aos perigos da selva, mas num minuto de distração recebe um golpe de pá pelas costas. Gilmar acertou em cheio a cabeça do homem, que despenca morto dentro do rio.

No meio do areal, Francisco volta da viagem. Vomita e chora, pois não suporta tantas revelações duras de uma só vez:

— Pare, por favor, não me conte mais nada. Não quero ver mais nada.

Dona Maria e o doutor observam as manifestações da mente perturbada do professor Francisco. Enquanto ele delira, o boto o fita sem piedade, prosseguindo com a tortura:

— Ainda não cheguei na melhor parte.

O mestre começa a ver as vítimas do boto. Está observando Antônio na cabana de fundos para o rio. O boto está descalço, pisa no barro molhado e fofo, onde afunda seus pés, antes de avançar no sujeito que vinha abusando de meninas. O mestre vê a cena dos pés no barro e faz a ligação com as marcas deixadas no chão da sua casa. Dessa maneira, em flashback, consegue se ver limpando seus próprios pés sujos de barro. Fica confuso. Não sabe até que ponto tudo aquilo é sonho ou realidade.

O desenrolar da conversa com Gilmar leva o professor a um passado não muito distante, em São Paulo, no ano da trágica situação com sua esposa Clara, em 1952, presenciando a cena, mas, dessa vez, como simples espectador. Depois de entrar na antiga casa, o mestre se vê esganando a própria mulher. Naquele momento chega o amante e, pelas costas, Francisco o atinge com um taco de sinuca na cabeça, derrubando o rival.

O professor continua a observar quieto. Agora ele sabe que se trata da continuação de uma cena que havia apagado da memória: era justamente a imagem da mulher e do amante dentro do quarto, ela em prantos, ele a consolá-la com abraços e beijos, dizendo que estava tudo bem e que nada de ruim iria acontecer. Porém, não é desse jeito que as coisas ocorrem…

De repente, os papéis se invertem: o homem que acorda com dor de cabeça pela pancada não é mais o professor, agora é Gilmar, transformado, que se levanta e pega, sorrateiramente, o pedaço mais pontiagudo do taco de sinuca caído no tapete da sala. Dirige-se até o quarto onde o casal se encontra distraído e, subitamente, ataca com fúria, golpeando os dois com várias bordoadas. A madeira pontiaguda do taco se torna arma letal.

O sangue se espalha por todo o chão do quarto. As imagens se fundem e se distorcem. O amante cai primeiro e Clara, que escorrega devagar, morre segundos depois, agarrado ao jaleco branco do professor, o mesmo que ela lavou com alvejante e engomou inúmeras vezes.

No meio da floresta, ainda amarrado, Francisco fica atordoado com a revelação expurgada do seu inconsciente. Olha para Gilmar, o terror estampado nos olhos, e indaga:

— Quem é você?

Gilmar o fita e diz:

— Sou fruto da tua imaginação, da tua loucura, da tua vida reprimida e sem grandes emoções.

O mestre se recusa a acreditar que tenha cometido tantas atrocidades. Desesperado, ele grita:

— Eu não fiz isso! Foi você! Você é o boto!

O boto, no campo de visão de dona Maria, não existe e sequer aparece. De fato, tudo o que ela e os demais ouvem é somente a transformação na voz do forasteiro, quando assume a identidade de Gilmar, e usa a boca do professor para dizer as coisas:

— Eu sou o boto, mas você também é, sou parte de você. Também faço parte da tua mente, do teu corpo, das tuas vontades, das mais secretas vontades. Tu que me criaste, sou teu espírito livre, encarcerado pelo sistema familiar, da boa política, da boa imagem, da boa vizinhança, da tradição, da família. Não passavas de um monte de merda que não servia para nada; quem te deu um sentido para vida fui eu. Eu vim para te tirar desse marasmo, dessa vida medíocre.

À revelação aterradora, ouvida do próprio assassino, se somou uma outra ainda mais surpreendente. No meio da grande clareira, Gilmar revela, na voz do professor, ser o verdadeiro assassino de Abreu e Amelinha. O mestre reconhece a autoria do crime, possuído pelo espírito do boto, no Pombal de Xavier. Na pele de Francisco, Gilmar continua. Diz que viu Amelinha vomitando no banheiro, ao mesmo tempo em que era abusada por Abreu. A cena revolta o professor. Pouco depois ele pede carona para ir embora e Abreu e Amelinha se oferecem para levá-lo. Ele hesita, mas aceita.

Na charrete surreal do casal de franceses Jean e Katherine, pilotada por Abreu, o trio segue em direção à casa do mestre. É quando Abreu resolve prolongar a festa e chama o professor para descer, nas proximidades de uma cerca de arame e estacas. É a propriedade do patrão. Francisco nem desconfia o que passa pela cabeça do casal. Deitados no mato, os dois se agarram com sofreguidão e começam a fazer amor.

Francisco apenas observava, até que a ruiva agarra a mão direita dele e a coloca sobre o seio esquerdo dela. Enquanto ele é puxado por Abreu, Amelinha o prende entre as suas belas pernas e os dois se entrelaçam, pele com pele, em descontrolada tempestade de volúpia.

De forma súbita e feroz, o professor é tomado pelo espírito furioso de Gilmar, que surge ao seu lado sem o chapéu, exatamente como quando apareceu em São Paulo. O casal é atacado de surpresa e os dois sofrem uma violenta surra, com paus e estacas. O boto Gilmar arrebenta a cabeça do gordo com uma paulada e estrangula a mulher. Abreu pagou pela torpeza criminosa da sedução de crianças. Amelinha, sempre cúmplice, morreu por nunca ter se oposto às crueldades do gordo abusador.

— Agora tu já sabes de onde eu retirei esse chapéu?

Gilmar se abaixa ao lado do corpo de Abreu e junta o chapéu branco, coloca na cabeça e antes de desaparecer pergunta, cinicamente:

— E aí, professor, o chapéu ficou bom em mim?

O mestre recorda o dia em que chegou em casa, depois da farra no Pombal, sem camisa e com uma coisa branca na cabeça que havia sido notada por Telma no dia seguinte. Refletindo por segundos, pergunta, estarrecido:

— O chapéu que você usa é o chapéu do Abreu?

O boto diz:

— Eu e o senhor, mas agora com essa enchente o chapéu deve ter afundado nas águas do rio.

No areal, as pessoas acompanham a narrativa brutal. Elas não veem o boto, mas ouvem tudo que sai da boca do professor, desmascarado e corroído pela náusea. O boto encosta os lábios no ouvido de Francisco:

— Eu sou aquele que veio de dentro, para cobrar o de fora. Tu e eu somos a mesma coisa. Não vivo sem ti e tu não vives sem mim.

Como se o feitiço fosse quebrado pelo poder das ervas, Gilmar começa a perder a sua força. O professor se aproveita: avança sobre o boto e lhe arranca uma orelha com os dentes. Gilmar grita de dor, por alguns segundos, mas logo se esparrama em gargalhadas estridentes, demonstrando ausência de qualquer sensação.

Surge então uma luz no meio do incêndio na floresta e de lá sai Telma, vestida de branco. Acompanhada de Tupã, espanta o boto de perto e cobre o professor com um manto azul, coberto com pedras cintilantes na gola. Ela sussurra:

— Este monstro não te pertence, tu vais vomitar, meu filho. Vais pôr todos os teus monstros para fora de ti e ficarás curado da tua doença. Vomita, meu filho, sem medo, coloca esse monstro pra fora, agora. Coloca esse monstro pra fora!

Francisco vomita, de forma ininterrupta. No seu delírio, o líquido de dentro apresenta a cor do sangue e da lama. Ele enxerga boto no meio da clareira e os meteoros recomeçam a cair, explodindo sobre o mitológico ser e transformando tudo em volta em cacos e cinzas. O bombardeio cessa após a maior explosão de todas. O professor fecha os olhos e desmaia, incapaz de suportar a torrente que atua no seu interior.

 

Ao acordar, o mestre percebe que está no porão novamente, amarrado e acorrentado. Pássaros anunciam a alvorada. O nível da água já está muito alto. Francisco acredita ter sido deixado ali para morrer.

O reflexo de um pequeno brilho de luz na água o faz relembrar do seu quase afogamento e, em seguida, do seu salvamento. Lembra do boto salvador e do primeiro encontro com Gilmar. A clareza deu o ar da graça e iluminou sua mente, revelando segredos tão recônditos. Francisco agora já sabe toda a trágica verdade sobre si mesmo. Ele toma um susto com o estrondo da porta do porão se abrindo.

Doutor Amorim e o francês Jean entram na casa. Eles pisam nas poças e comentam que não vai demorar muito para que tudo esteja debaixo d’água. Os dois param bem diante do mestre, em silêncio absoluto. Seus semblantes apresentam ares de extrema seriedade e preocupação.

 

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