O Cobrador da Amazônia
Autor: Chicco Moreira
XXIV. O que aconteceu?
Depois de tanto tempo em Xavier, às voltas com o sobrenatural, Francisco alimenta uma obsessão: dar cabo do assassino. Com a espingarda de Messias ao alcance das mãos, monta guarda na varanda para vingar o caseiro e as demais vítimas.
É uma vigilância permanente. Os dias passam sem que o professor se dê conta da energia consumida pela sua fixação. Como uma planta que murcha, ele começa a se desidratar, e nem percebe o seu abatimento.
Telma, obediente, mantém a distância prometida. O rio continua a subir, agora mais rápido, e o nível das águas está prestes a atingir o antigo local de leitura que o mestre usava, na beira do barranco perto dos troncos.
O silêncio que habita a casa ao lado incomoda e preocupa a vizinha, que resolve sair da toca e se aproxima devagar, na tentativa de observar o professor. Ansiosa, Telma caminha, a passos largos e determinados, em direção à casa de Francisco. Ao entrar, ela encontra o mestre desmaiado no chão da sala, com a arma ao lado, debilitado e doente.
Sem conseguir acordar o mestre, a vizinha pega a arma, leva-a para o interior da casa e a esconde. Com dificuldade, ela deita o professor na rede que está a poucos centímetros do chão.
Telma sai para pedir ajuda. Um grupo de pessoas se aproxima e auxilia na tarefa de levar Francisco ao posto de saúde. Na rede, desmaiado, o mestre é carregado pelas ruas de Xavier, como num cortejo fúnebre. Na praça, o barbeiro Carlitos pergunta a uma senhora:
— Quem é aquele moribundo?
— É aquele professor.
No atendimento, enfermeiras espetam cuidadosamente soros reparadores no corpo debilitado. Francisco teve pesadelos durante o mal-estar. Ao acordar, não sabe onde está nem o que está fazendo ali naquele leito de hospital. Ao lado está Antônio, o suspeito de ataque a crianças e abusos contra mulheres que fora espancado por Gilmar.
Xavier respira a luta política depois da morte de Lindemberg. Em menos de três semanas, dois sucessores já ocuparam o cargo de líder da vila. O candidato e então prefeito de Borba ainda não teve paz, e os crimes praticados pelo boto perderam espaço na ordem das prioridades econômicas pessoais dos mandantes corruptos.
O delegado não consegue fazer outra coisa além de apaziguar brigas entre associações e partidos políticos adversários, quase inimigos, em razão dos interesses antagônicos. A juta e os outros produtos naturais da Amazônia estão dando muito retorno aos cofres e aos bolsos dos novos atravessadores. O poder já foi redistribuído.
Telma entra na enfermaria. Surpresa, disfarça a alegria e puxa conversa com Francisco.
— O que aconteceu?
O sorriso da vizinha ilumina o quarto e, do seu leito, o professor pode desfrutar de uma visão privilegiada do rosto da moça.
— O senhor ficou desidratado e se alimentando feito um passarinho. Aliás, um passarinho comeu mais que o senhor nesses últimos dias.
Francisco demonstra cansaço e fica em silêncio. A enfermeira comenta:
— Quando não se come, dá nisso. Um choque provocado pela queda de açúcar, hipoglicemia, foi a causa mais grave, mas tudo já está resolvido. Agora o senhor precisa repousar para repor as energias e logo estará em casa.
Telma se destaca com seu vestido estampado, de cores alegres. A vizinha é informada pelo médico responsável de que o professor receberá alta. O mestre indaga sobre os fatos ocorridos na ausência dele:
— Por acaso você ouviu ou viu alguma coisa estranha, suspeita, rondando a casa?
Telma retruca:
— Na verdade, não tenho ouvido nem visto nada. Não tenho conseguido dormir direito. Ando muito assustada com toda essa história. Não sei por onde anda o Messias. Há muito não o vejo. Estou preocupada com ele. Será que esse boto tem alguma coisa a ver com o desaparecimento dele?
O professor gostaria de contar a verdade, ao menos na parte que diz respeito ao sumiço do caseiro, mas recua.
— Vou ver o que falta para o senhor sair daqui.
Telma sai do quarto e Francisco percebe que o homem no leito ao lado começa a se mexer. O professor observa o paciente até ver Gilmar pular a janela, adentrar o quarto, e posicionar-se de pé ao lado de Antônio.
O boto olha com ar ameaçador.
— Parece que ele está acordando. Será que se lembra de mim?
Gilmar espera Antônio acordar. O paciente geme um pouco, até que abre os olhos. Reúne forças para se levantar, mas não consegue, e apenas ergue uma parte do tronco, o suficiente para perceber a presença do boto no ambiente da pequena enfermaria. Como que em transe, ele solta um grito de horror.
Gilmar se assusta, recua alguns passos. A chance de acabar o serviço foi adiada. Irritado, o boto pula a janela para fora dali, desaparecendo na mata.
Os papéis da alta médica são assinados e Telma e o professor saem com muita pressa, tornando-se cada vez mais cúmplices naquela situação e nos seus infortúnios. Diante do posto, eles deparam com uma charrete estacionada, que ela mesma alugou. Depois de subirem no veículo, Telma revela que o professor está correndo risco de vida, e que ela chegou a ser ameaçada por umas pessoas, que ainda tiveram a ousadia de mandar vários recados agressivos.
Telma explica que as pessoas da vila desconfiam da participação do mestre em todos os crimes recentes, e sugere que os dois saiam de Xavier. Francisco ouve tudo calado.
Passados alguns instantes, eles chegam ao topo da colina e descansam à sombra de uma árvore. Para o mestre, é a hora de contar a verdade sobre Messias.
Em minutos, o rio alcança a moita onde Gilmar guardara alguns objetos pessoais das suas vítimas. As águas já estão bem mais perto da casa do professor. A vantagem da altura do barranco já não existe mais. Todos sabem que alguma coisa muito estranha está acontecendo, até porque o rio nunca subiu tanto e tão rápido assim. O volume de água aumenta meio metro a cada hora.
Por enquanto, Francisco e Telma ainda estão seguros na colina. Descem da charrete e sentam no tronco de uma árvore, quando o mestre desabafa.
— Eu preciso te contar a verdade sobre o Messias, preciso acabar com essa angústia que está me corroendo.
Cabisbaixo, ele relata como se deu o desaparecimento do caseiro. Diz ter sido cúmplice de um assassino por medo e covardia, por burrice. Inesperadamente, o professor surta e chora como criança. Ainda que nervosa, Telma o consola.
— Eu acredito no senhor. Pode chorar, pode chorar, vai lhe fazer bem.
Com suavidade, ela segura a mão do mestre e afirma:
— Não volte para casa agora; pode ser perigoso. Ficar longe da casa é a primeira coisa a se fazer. As pessoas podem querer feri-lo.
— Você tem razão.
O mestre obedece.
— Espero você aqui mesmo, Telma, leve a charrete com você. Se aparecer alguém, eu me escondo no mato.
Telma fica preocupada em deixá-lo sozinho, mas levá-lo seria pior. Sem perder mais tempo, ela parte em direção à vila.
Francisco procura um local mais escondido e nota a passagem de dois caçadores. Um deles, com uma paca recentemente morta, espetada em um pau, olha desconfiado, enquanto o outro, com um saco cheio de tripas, cumprimenta.
Sozinha, Telma conduz a charrete e desce a colina a toda velocidade. A vizinha se sente cada vez mais dominada pelo desespero. No porto de Xavier, a moça depara com o delegado e com alguns soldados controlando os curiosos. A confusão se deve a mais um achado macabro: um cadáver apareceu boiando no rio, debaixo da plataforma, onde alguns pescadores guardam seus barcos menores. A subida violenta do rio está remexendo com tudo. A plataforma, que antes ficava bem abaixo do barranco, agora está quase no mesmo nível da rua de cima. O corpo foi encontrado por um dos caboclos.
— Parece que é o seu Messias.
O barbeiro Carlitos vê Telma e balança a cabeça com um ar de tristeza e preocupação. Oliveira, o assistente da polícia, comenta com o delegado Jaílson:
— Isso tá muito esquisito, agora foi o Messias.
Este, por sua vez, observa:
— Tu reparou que o rio tá subindo mais rápido hoje? Por isso que o cadáver boiou. Quase nove dias. Mas o que será que tá acontecendo aqui? Nunca vi isso na minha vida.
O delegado refere-se ao rio, mas Oliveira entende que há mais coisas no ar. Alguém na multidão diz:
— Foi só aquele professor vir pra cá que essas coisas começaram a acontecer com a nossa gente.
Outra pessoa completa:
— Aposto que, se revirar aquela casa, a gente acha a arma que matou o velho Messias.
Jaílson, ouvindo as manifestações do povo, se antecipa, de modo a não dar tempo de fermentar a massa. Ríspido, como de costume, acaba com as conversas paralelas:
— Ninguém aqui vai fazer nada. Quem manda aqui sou eu. Aparentemente o corpo não tem perfurações. Ele pode ter caído dentro d’água.
Nesse momento, algumas pessoas se irritam com o delegado. “Ora, Messias não teria morrido nessas águas por nada neste mundo. É óbvio que ele foi jogado morto”, diz a população enfurecida. O delegado coloca ordem no cais. Nesse instante, ao ver Telma correr em direção ao corpo, tenta impedi-la:
— A aparência está horrível. Ele ficou vários dias no rio.
O delegado conclui a frase segurando sua ex pelos braços. Desesperada, a morena chora nos ombros de Jaílson.
— Tem que fazer alguma coisa, delegado.
Jaílson suspira e revela:
— As pessoas já estão falando muito sobre seu namorado, é melhor prender esse professor antes que alguém resolva fazer justiça de outro jeito.
Não era bem isso que Telma gostaria de ter ouvido do delegado.
— Mas não foi ele, Jaílson, eu sei que não foi.
Ela está realmente decidida a ajudar o professor e compra a briga. O delegado assevera:
— Mesmo assim, vai ser melhor pra ele ficar sob minha custódia, minha proteção, até aparecer algum boto culpado.
Telma, sem humor e tempo para explicações, dispara:
— Não vai ser fácil pegá-lo.
O delegado compreende que ela sabe de alguma coisa.
— O quê? E tu, por um acaso, sabes quem é esse cabra?
Telma engole o choro e responde seriamente:
— Sei, mas nunca vi.
— Espera um pouco: o que tu tá querendo me dizer?
Nessa hora, para sorte de Telma, um dos soldados interrompe a conversa:
— Delegado…
Jaílson se irrita mais ainda. O soldado prossegue.
— Desculpe, mas é que estão chamando o senhor no posto de saúde. Querem dizer alguma coisa sobre o boto. Parece que aquele Antônio acordou do coma e a enfermeira tem uma revelação importante e urgente.
Jaílson e Telma há tempos não se olham com tanta cumplicidade e vão juntos para o posto de saúde. Agora, a vizinha está decidida: só pensa em provar a inocência do mestre.
No alto da colina, de joelhos, o professor continua a passar muito mal. Sensações difusas lhe cortam a carne e a alma. Misturam-se o pânico e a culpa, o temor e a dor. De repente, o calafrio. A presença do boto se anuncia.
Gilmar está ali, de pé, parado. Sem hesitar, o mestre encara o desafeto.
— O que você tá fazendo aqui, o que você quer agora? Veio…
O boto não espera o professor terminar a frase e, com um pedaço de pau na mão, acerta-lhe bem no meio da cabeça, derrubando-o imediatamente com o golpe. Tomado de surpresa, Francisco fica no chão e é atingido novamente.
— Existe muita gente querendo a tua cabeça, professor.
Francisco, ainda bastante zonzo, diz:
— A culpa é toda sua, seu monstro!
— O senhor é realmente um mal-agradecido.
O professor não acredita no que está ouvindo. Com ar paternal, Gilmar prossegue:
— Quantas experiências novas eu lhe proporcionei? Quantas histórias interessantes o senhor terá pra contar a partir de hoje? Tudo por minha causa, e o senhor nem acreditava na lenda.
Gilmar olha com respeito para o mestre.
— O senhor tentou me impedir de fazer o meu trabalho. Eu vim aqui pra cobrar os outros que deviam. Vim pra sacrificar vidas medíocres preenchidas com mentiras e calúnias. O que existia aqui era um alarmante volume de pouca vergonha! Homens de poder e dinheiro, movidos pelo instinto do mal, violentaram mulheres e crianças. Crianças! Não me olhe desse jeito, eu lhe avisei bem antes de tudo, eu vim pra cobrar!
Francisco interrompe:
— Você é um doente!
Gilmar não se abala e responde com mais violência. Acerta outra paulada seca na cabeça de Francisco. Sem mudar sua expressão, como se estivesse manifestando uma simples reação de um animal que educa o filhote com patadas, e, em seguida, tudo continua bem, o boto levanta-se com o porrete e nota que alguém se aproxima. Francisco, zonzo com a terceira paulada, não tem iniciativa. Os troncos, com o movimento dos galhos, embaralham ainda mais a sua visão, já bastante comprometida pelos golpes, e ele desmaia sem saber para onde foi o agressor.
Telma sai desesperada do posto de saúde. Jaílson vem logo atrás, tentando impedi-la de ir ao encontro do professor. Contudo, é interrompido por um soldado, com outra informação importante:
— A casa do professor está ficando debaixo d’água. O rio já subiu muito.
A vila está afundando. Ao clima de calamidade pública se somam o horror pela violência e a perseguição ao forasteiro agora suspeito de tantos crimes. A Oliveira, o assistente da polícia, Jaílson avalia:
— A essa altura já devem estar armando uma forca para o professor em praça pública. Essas pessoas daqui não costumam ser boazinhas com estranhos que vêm aqui e fazem o que querem.
Oliveira alerta o delegado para a necessidade de socorro à população. O rio sobe sem parar.
— A praça está quase toda alagada, não haverá enforcamentos hoje. A segurança das pessoas está em primeiro lugar, delegado. Esse professor pode esperar mais um pouco.
Jaílson reconhece a situação de emergência e dá ordem para que os soldados debandem imediatamente:
— Montem uma equipe de busca. Passem nas suas casas; peguem o que der e levem para a colina. Façam essa procura só por onde conseguirem passar. Avisem todos que nos encontraremos na colina daqui a duas horas.
Pelo menos por enquanto, o professor ficará livre das garras da lei.
Enjoado e com dores de cabeça, o mestre se recupera do desmaio. Tem as mãos amarradas e os pés acorrentados. Não sabe onde está, mas o local parece um porão abandonado, cheio de furos por onde entra a luz do sol. Um dos focos acerta a ponta de um nariz com uma protuberância radical, revelando a face pontiaguda de um ser observador.
— Ora, ora, ora… Vejam quem está aqui. Como está a cabeça, professor?
O homem tirou seu rosto da luz.
— Quem está aí?
— Não reconhece a minha voz?
— Não brinque comigo, quem é você? O que quer de mim?
— Quero apenas curá-lo, professor Bonartério, ninguém quer brincar com você.
— E quem é você?
— Já que o senhor não se lembra de mim, terei de fazer alguns procedimentos.
O estranho se levanta da cadeira e vai até um cavalete encoberto por uma lona suja e respingada de tinta. Retira a cobertura e mostra uma tela pintada, um quadro diferente, porém não totalmente desconhecido do mestre. Francisco percebe os detalhes dos olhos frios que lembram o semblante de Gilmar.
— O senhor não lembra deste quadro?
— Deveria?
— Se a projeção estivesse correta, sim. Vejo qu’eu estava certo.
— Certo? Me deixa nesta situação e se acha certo? Amarrado, sequestrado, não sei o que o senhor quer de mim. Não sei quem é o senhor, nem que quadro é esse, não sei nem onde estou e quero sair daqui, agora.
— Posso deixá-lo partir, mas confesso que não é uma boa ideia, pois o mundo pode ser violento com as pessoas sem capacidade psíquica para administrá-lo. Saiba que existe um batalhão de caboclos, com terçados nas mãos, procurando-o aí fora. Tem muita gente querendo acabar com a sua raça. Acho que o senhor está mais seguro aqui comigo. Aguarde um minuto, pois já volto.
O mestre se desespera:
— Espere, espere!
O professor faz de tudo pra chamar a atenção, mas o misterioso homem segue sem olhar para trás, decidido, como se realmente soubesse o que está fazendo. Francisco está confuso e apavorado. O quadro, à sua frente, vai se descortinando aos poucos.