O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XXIII. É guerra que o senhor quer?

O aroma do café preparado por Telma se espalha como brisa e desperta o professor de uma noite angustiada. Ainda indisposto, Francisco se achega à cozinha. Telma resmunga:

— Quem mandou o senhor levantar? Pode voltar, quem prepara o café também pode levar.

Antes de pensar em uma resposta simples, o professor ouve que alguém chama pelo seu nome na porta da frente:

— Professor Francisco, o senhor tá em casa?

Telma quase deixa o bule de café cair no chão ao reconhecer a voz.

—É o delegado Jaílson, quer apostar?

O professor sente uma repentina tremedeira nas pernas e, quase sem ação, resolve disfarçar o pânico. Telma abre a porta com um ar confiante, certa do transtorno mental que vai causar ao delegado. Surpreendido com aquela recepção feminina, Jaílson muda sua fisionomia. Tudo que ele não gostaria de ver está ali, na sua frente. Sua amada abrindo a porta da casa de um forasteiro, suspeito de triplo assassinato, a essa hora da manhã, é sinal de que a moça dormiu com ele.

— Telma?

Ela é simpática, apenas por educação.

— Bom dia, delegado.

O professor toma a frente:

— Entre, delegado, seja bem-vindo. Que ventos o trazem? Mais ataques de boto?

Jaílson disfarça o ciúme. Nota manchas no rosto do mestre e os ferimentos da surra que levou do filho do boto. O delegado indaga:

— O senhor andou brigando?

— Se apanhar, ser agredido pelas costas, é brigar, então eu briguei.

— O que aconteceu com o senhor? Quem fez isso?

Telma, impetuosa, se antecipa:

— Foi o filho do boto!

Jaílson não gosta de ouvir a voz da mulher, ainda por ali pela casa do suspeito, e olha para ela com olhos cheios de veneno. Em tom rude, o delegado retruca:

— Não sabia que um nobre intelectual precisava de porta-voz para suas respostas.

Francisco sente a cutucada e se antecipa.

— Foi o Jonas, delegado, ele me agrediu.

— E quando foi isso?

Telma não se segura:

— Um pouco antes de cometer o assassinato. Antes de ser preso pelo senhor.

O delegado morde os lábios e se controla; resolve acatar o relato de Telma, mas não tira o olho de Francisco. Baixando o tom de voz, o delegado avisa:

— Hoje é a noite da festa de São José, vamos fazer uma tocaia pro boto, caso ele resolva aparecer. Se o senhor estiver se sentindo melhor e interessado em ajudar, passamos por aqui na ida pra festa. Traga uma arma. Quanto aos seus ferimentos, se o senhor desejar prestar queixa de agressão, estarei na delegacia. Com licença.

— Não vai dizer o que o senhor veio fazer aqui, delegado? Foi só para me convidar para a festa de São José?

Jaílson dá uma resposta vazia:

— Vim apenas tirar umas dúvidas.

Telma fecha a porta da casa e ainda consegue sentir os firmes passos do delegado, distanciando-se.

Depois de saborear o café e comer uns pãezinhos, Francisco pensa na visita inesperada e lembra das palavras do boto, avisando-lhe de que Jonas ia tentar fazer a cabeça do delegado contra ele. Enfurecido, e sentindo-se impotente, vai até o quintal. Ao perceber a presença dele, Telma reage, com um tom maternal:

— O senhor não consegue obedecer?

Ele não liga e pergunta:

— Você viu o Messias? Desde ontem não o vejo.

Ela também não lembra de ter encontrado o caseiro nessas últimas vinte quatro horas:

O professor vai até o barraco e se arrepia ao reconstituir a última visão da figura de Gilmar, saindo dali de madrugada. Telma anuncia:

— Vou fazer uma entrevista na Vila Nova e volto rápido.

O professor fica um pouco receoso, mas concorda.

— Obrigado pela noite, você é uma verdadeira amiga.

— Eu que agradeço poder passar a noite aqui com o senhor.

Francisco entra em casa olhando para o corpo da mulher, embora a sua fragilidade emocional não lhe permita valorizá-lo muito naquele momento. Ao fechar a porta, num sobressalto, dá de cara com Gilmar observando as curvas de Telma e avança:

— Pare de olhar pra ela, seu imundo! O que você fez com meu caseiro?

O boto olha pela janela, continua observando a tentadora vizinha. O cinismo incomoda o professor, que segura na gola do paletó do boto e usa toda a sua força para colocá-lo contra a parede, aos berros:

— O que você fez com o Messias, seu porco safado das águas?

Gilmar se assusta, e pede arrego:

— Calma, professor.

Francisco aperta o pescoço do boto com as duas mãos. Asfixiado, sem fala, Gilmar respira pelo orifício da cabeça. Francisco grita outra vez:

— Responde, animal, o que você fez com Messias?

— Calma, salvei a vida do senhor duas vezes, sem contar com essa última. Não precisa me matar.

Sem entender nada, o mestre pergunta:

— Que última? Fala.

Gilmar olha sem graça e responde:

— Essa última, do Messias. O cara ia entregar o senhor pro delegado. Eu não podia permitir isso.

— E o que você fez com ele?

O boto, com um leve sarcasmo, responde:

— Tive que tomar as minhas providências.

— O quê? O que você fez? Você o matou? Você matou o Messias, seu desgraçado?

Gilmar segura o peso do professor, que despenca como um saco de batata. O boto não para por aí e confessa:

— Foi preciso.

O mestre pergunta:

— Onde você o colocou? Onde?

— No rio.

Francisco desaba no chão de vez. Suas forças se esgotaram. O mito está destruindo seu emocional. Sofre e chora, lamenta profundamente a morte do caseiro. Assim, embora pareça entregue às vontades e ao poder do boto, renasce do fundo da sua alma a energia necessária para jogar para fora da sua casa aquilo que ele classifica como um demônio das águas.

 

Com o ombro colado na barriga do boto, o professor o arremessa para fora da casa, caindo no gramado por cima do animal. Francisco soca o rosto de Gilmar duas vezes até ser imobilizado. Gilmar derruba Francisco e corre em direção ao rio. O mestre vai atrás. Sem qualquer esforço contra a correnteza, o boto nada graciosamente.

Francisco desabafa:

— Você é um animal desprezível, que não merece viver, assassino!

O boto, nadando de lá pra cá, fica furioso:

— Não se esqueça que o senhor precisa de mim. E não adianta falar nada porque ninguém vai acreditar que o senhor é amigo de boto.

Sentindo-se desafiado diante da incontida violência de Francisco, Gilmar ameaça:

— Então é assim, professor, é guerra que o senhor quer? Então é guerra que o senhor terá.

O bicho mergulha e desaparece. A impotência e o medo dominam o professor que, estático e arrependido de seus arroubos, prevê contra-ataque. Em casa, sentado nos degraus da varanda, e moído pelas perdas recentes, o professor decide resolver definitivamente o problema: vai eliminar o boto, a tiros, nesta noite de São José, ou em outra qualquer. Certo da decisão tomada, caminha em direção ao barraco onde está a espingarda Winchester 44. Na gaveta de uma cômoda, pega munição suficiente para uma batalha.

Transtornado, como se fora uma espécie de justiceiro da selva, o mestre respira fundo, coloca a arma no ombro, atravessa o quintal e volta para a varanda. Prepara uma barricada. Para tanto, utiliza as mesas da casa. Se houver o confronto, Francisco está preparado.

Logo anoitece em Xavier. O professor ouve um ruído vindo da rua e, como que por instinto, levanta-se com a arma em punho, enquanto percebe a aproximação de um grupo de homens, todos armados com espingardas, facões e terçados, sob comando do delegado. Francisco se apresenta com a espingarda. O delegado o recebe no meio dos outros e todos saem calados e quietos para a festa de São José, certos de que a noite será de longa espera. Pela fisionomia dos caboclos, não haverá perdão. O boto que se cuide.

A festa ainda está no início. Francisco e mais doze homens armados se juntam nos fundos da capela de São José para ouvir as ordens de Jaílson. Muita gente se reúne para dançar, como ocorre todos os anos, no mesmo lugar, com os mesmos músicos. Dançarinos se misturam às barracas de comida e bebida, como reza a tradição.

O delegado determina as posições de guarda dos homens. Todos estão decididos a acabar com o boto.

A chegada de mais e mais pessoas anima o ambiente, no campo de terra. O professor, por alguns segundos, esquece a missão e observa homens e mulheres envolvidos num exótico jogo de sedução. O estrangeiro chama a atenção. Talvez os nativos nunca se acostumem com a presença de forasteiros na comunidade.

Garotas de treze e quatorze anos passam diante dele e se insinuam, algumas chegam a parar ao seu lado, encarando-o e cochichando. A precocidade das meninas salta aos olhos. A infância roubada as torna mulheres antes da hora, alvos e impertinências masculinas e fixações quase obsessivas. Francisco pensa em Abreu, em Lindemberg, nos abusos contra crianças, e deduz: de boto, todo homem de Xavier tem um pouco.

Apertado, o professor procura o banheiro. Sem saber onde deixar a espingarda, comete uma falha terrível: escora a arma na parede do lado de fora e fecha a porta. Logo ouve um barulho e sente calafrio na espinha. Sai rapidamente e dá de cara com Gilmar, a centímetros de distância da sua “papo-amarelo”. Ora, eis aí uma tolice de iniciante.

O medo aumenta e os batimentos cardíacos disparam. O professor evita movimentos bruscos. O boto adverte:

— Só vim aqui dizer que eu sei da tocaia, mas tô avisando: tome cuidado com a sua cabrita, ela tá toda faceira pela festa. É uma presa fácil pr’um bicho como eu.

O boto dispara e some, como se fora um gato maracajá, por entre as árvores que cercam o terreno da festa. O mestre pega a espingarda e toma o rumo da aglomeração. Telma o vê de longe.

— Até que enfim encontrei o senhor. Tá gostando da festa?

A vizinha nota que ele está meio pálido:

— O senhor está bem?

Disfarçando, o mestre afirma estar tudo bem. Os dois se misturam aos grupos animados no entorno.

À medida que o clima esquenta, a chama do desejo arde mais intensamente. Casais se encontram em cantos escuros do bosque, furtivamente, para se afogar na lubricidade. Se as mulheres ficam grávidas, a culpa é do boto. Assim reza a tradição.

Muita euforia, comida de sobra, música ininterrupta. Ninguém fala dos assassinatos do patrão, de Abreu, Amelinha. As mulheres cantam e brincam; os homens, por sua vez, bebem de cair, enquanto os mais velhos babam em cima de jovens em trajes sensuais e cheias de malícia. Não, Xavier jamais será feudo da morte.

Enfim, chega a hora mais aguardada: o momento em que os músicos tocam a criativa música do boto. Todos se levantam, saem das mesas cantando e dançando, em um clima contagiante. Os homens participam da dança. É a tradição. Francisco se livra por não ser natural de Xavier.

A dança tem vários movimentos. Num deles, os casais se separam, como se fosse uma quadrilha de festa junina, homens para um lado e mulheres para o outro. Todos os homens presentes tiram seus chapéus, mostram suas cabeças para as mulheres e viram-se imediatamente para os jovens presentes na plateia. O professor compreende tratar-se de um gesto para identificar a existência de algum boto na festa.

A dança termina. Telma conversa com algumas senhoras e se afasta novamente do professor. Por alguns instantes, ele a perde de vista, fica apavorado e confuso ao observar que todas parecem usar o mesmo vestido. Ao avistá-la, sua expressão revela pânico e terror. Usando paletó branco e chapéu, um homem se aproxima de Telma, olha para Francisco e sorri, com deboche. É Gilmar.

Francisco corre em meio à multidão. Empurrando as pessoas, abre caminho no peito. O delegado percebe o movimento de Francisco e dá o alerta para todos os homens da tocaia. O professor, com raiva, chega sem dar chance ao inimigo, saltando em cima dele. Telma está no centro da confusão. Quando arrisca um soco, o professor descobre o engano. Um pobre senhor, acompanhado

da esposa e de duas filhas, que não acreditam no que estão vendo, desaba ao ser atacado. Nesse momento, a mulher do agredido voa para cima de Francisco, com tapas e pontapés. O professor se dá conta de que o descendente de francês com índio, que ele derrubou no chão, em nada se parece com Gilmar e se envergonha pela atitude irrefletida.

Jaílson, segurando firmemente a defensora do homem agredido, se desculpa com a família do cidadão. Sujo de barro e bastante irritado com o vexame, a vítima esbraveja, sentindo dores e dificuldade para ficar em pé.

— Seus miseráveis, isso não vai ficar assim.

O delegado acalma a família e se dirige a Francisco:

— O combinado não era esse. O senhor não pode agir dessa forma.

Jaílson nem desconfia que o professor conhece Gilmar. Sem reação, Francisco resolve ir embora.

Em casa, o mestre não vai para o quarto, e segue direto para proteger-se por trás da barricada feita de sofá e mesa, montando guarda permanente. Depois de tantos estragos, está possuído pela ideia fixa de acabar com a vida de Gilmar.

Decorridos quatro dias, ele não teve qualquer sinal do boto. De sua casa, Telma observa o vizinho, completamente atordoado, imóvel na beira do rio. Preocupada, a moça decide abordar o amante. O professor faz um pedido.

— Telma, preciso lhe pedir uma coisa.

— Peça. Pode pedir.

— Tome muito cuidado de hoje em diante.

O mestre acaba deixando sua vizinha mais confusa.

— O que está acontecendo? Assim o senhor me assusta.

— Eu não posso contar agora, Telma, mas sei que você está correndo perigo. Não deixe as portas abertas, pois existe alguém tentando feri-la, possuí-la, machucá-la. Sem dizer nomes, Francisco adverte sobre um ataque violento.

Parecendo desafiar o professor para uma briga, Telma força a barra.

— Eu não saio daqui sem saber o que tá acontecendo.

— Sinto muito!

— É isso que o senhor tem pra me dizer? Tem alguém, que nem imagino quem possa ser, tentando me fazer mal, e o senhor não pode me dizer nada?

Telma está visivelmente irritada.

— Do que o senhor tem medo? Eu posso ajudar. O senhor se esqueceu que sou sua amiga?

Francisco resolve compartilhar seus problemas.

— Eu gosto muito de você, não quero que nada de ruim lhe aconteça, e é por isso que vou contar. Você tem de acreditar em mim, não pode, em hipótese alguma, achar que estou maluco.

O professor dá uma pausa e se contradiz:

— Na verdade, nem eu sei mais se estou ou não maluco. Se você tiver essa impressão, por favor, me diga. Juro que não vou achar ruim.

Ele se concentra e passa a olhá-la de um jeito diferente, como que implorando por misericórdia, por ajuda, por socorro. Ela decifra a mensagem e o acalma:

— Eu prometo que acredito em tudo o que o senhor me contar. Acredito no seu conhecimento e, por isso, o respeito muito.

Depois de um preâmbulo, Francisco fala sobre como encarou a lenda do boto, que considerava meio sem sentido. Agora, no entanto, com o passar dos dias, das semanas, tudo está totalmente diferente. Tem outra opinião a respeito do que está acontecendo na vila. Então, fala tudo sobre os encontros com Gilmar.

Assustada, Telma respira fundo.

— Isso explica tudo, seu comportamento, a tensão, o nervosismo. Os ataques, minha nossa! Como eu sou burra, não quis ver as coisas, logo eu.

Ele segura no braço dela:

— Calma, você não poderia saber, nem eu acreditaria nesses ataques se não tivesse conhecido esse canalha.

A vizinha não para de divagar sobre o que está se passando ali, na vila, na cabeça, no coração, na vida.

— Então, eu preciso ajudá-lo.

Porém, imbuído de um incontrolável sentimento de proteção, o professor decreta:

— Nada disso, você vai ficar o mais longe possível dessa casa. Ele aparece e some com muita facilidade. Não posso me arriscar a perdê-la.

É bastante incisivo nas recomendações.

 — Vá para casa, feche as portas e tome bastante cuidado, pois ele tentará me atingir atacando você. Existe um magarefe solto nesta região.

Rolar para cima