O Cobrador da Amazônia
Autor: Chicco Moreira
XVI. Um homem assim, maravilhoso, pode tudo!
Ao acordar, sozinho, Francisco ouve a voz da vizinha ao longe, parecendo estar no quintal com Messias. Demora uns instantes para se levantar, aproveitando para sentir mais um pouco o cheiro do sexo deixado no lençol da cama.
Telma está perto do caseiro. Falam muito pouco a esta hora da manhã. O mestre, sem fazer a cama, levanta-se e vai ver o movimento lá fora. Observa da varanda privilegiada o dia claro, o sol iluminando o rio e as árvores, e pensa com seus botões: um dia lindo, depois de uma noite “quente”.
Ao fitar o rio, um movimento chama sua atenção: é um boto a exibir as nadadeiras com elegância e destreza. As lembranças do afogamento e do salvamento ressurgem com a exibição. Messias se aproxima:
— O caboco que é salvo pelo boto fica ligado a ele para sempre. Esse animal não vai abandonar o senhor nunca mais, é a segunda vez que ele aparece por aqui hoje. Acho que veio lhe dar bom-dia.
O professor se impressiona com as palavras do velho, sintéticas, conclusivas. A vizinha também se chega.
— Dormiu bem, professor?
— Sim, obrigado por perguntar, e a senhora?
Com ar de malcriada, Telma diz secamente:
— Não preguei o olho!
Responde com um falso olhar no rosto e, em seguida, fecha a cara. Volta para os remendos da rede de pesca, repassando para si a noite fracassada.
O boto exibido nada muito mais próximo da margem. Mergulha, salta, brinca com a água e, depois de um tempo, vai embora. Francisco se emociona com esse sinal da natureza exótica.
Vai para o pequeno escritório. Pega o material na escrivaninha e, com muita fome de escrever, inicia uma narrativa sobre suas impressões da região e de seus habitantes, sem esquecer o conhecido boto e toda a magia lendária. Nem parece aquele homem imparcial. Já não se inquieta com o casal assassinado nas terras do patrão, e até a sombra de Clara se esvanece.
Entretido com as suas obrigações, não liga muito para o barulho de passos na cozinha. Alguém entrou na casa, e o professor logo imagina que deva ser a vizinha. Ele pensa na noite de amor e sente um pouco de constrangimento. Os anos sem sexo deixaram uma crosta grossa e seca, dura de quebrar. O desconforto é muito visível na hora de encarar a mulher.
Intrigada com a situação vivida na cama do vizinho, na noite anterior, Telma dá mais duas voltas pela casa. Logo diz:
— O choro foi apenas uma crise de consciência. Não deve ter sido nada sério ou preocupante. Até que foi legal, precisava de um pouquinho mais de tempo, mas foi legal. Você é casado?
O mestre, sem reação, não sabe como responder. Prefere não comentar sobre o casamento desastroso, finge indiferença. A cabocla põe as cartas na mesa.
— Não precisa responder se não quiser. Isso não faz a menor diferença. Sabe como é, aqui tem mais mulher do que homem. Mulher que liga para fidelidade hoje em dia não sabe ser feliz. A gente precisa de muito pouco. Não é o fato de ter um homem, em todos os aspectos, qu’eu vou ter a cara de pau de pensar que ele se contentaria só comigo! Um homem assim, especial, não fica com uma mulher só, professor… E quer saber mais? Um homem assim, maravilhoso, pode tudo!
Francisco acha o discurso meio vulgar, meio libertário e falso. Apesar de ter sido uma experiência maravilhosa, ele não demonstra emoção ao ouvir as palavras da parceira de cama da noite passada.
Vira-se para olhar nos olhos dela.
— E aquele seu marido podia tudo?
A indagação soa como uma afronta para a moça.
Sem saber o que dizer, ela apenas responde com humildade:
— Nunca me incomodei e sabia das outras. Isso nunca me afetou. Sempre me senti amada por ele. Era pra mim que ele voltava, era na minha cama que ele dormia e era comigo que ele acordava.
— Isso é um pensamento machista!
— É a realidade.
Nem mesmo ele entende o que está fazendo e, apesar de todos os seus esforços, não consegue parar com suas frases ridículas.
— Fico feliz que a senhora seja realista. Isso não me parece ser muito comum entre as mulheres daqui.
O pensamento equivocado, materializado na boca do mestre, de forma extremamente grosseira e pessoal, só consegue magoá-la ainda mais.
— Não sei o que pensar.
Ele sente um ar de fragilidade, mas não se deixa levar
— Fico feliz pela sua sinceridade. Se já acabou, me dê licença, pois preciso terminar meus afazeres.
Dá as costas pra ela, enquanto a vizinha, nesse momento, segura a fúria que sobe. Ela se vira para sair, determinada a nunca mais pôr os pés naquela casa. Não consegue lidar com esse tipo de comportamento. Ele reage.
— Eu não sou um amante experiente e gostaria de me desculpar. Espero que a senhora não se sinta usada.
A vizinha sente que ele não está fazendo nada por mal, mas, sim, por ser um lesão, como dizem aqui nessa região. Um homem sem muita autoestima.
— Não estou me sentindo usada. Talvez mal usada. Que já seria bastante diferente, e muito pior.
Sentindo a masculinidade esmagada, o mestre baixa os olhos. Deixando-o sozinho, confinado em seus pensamentos, a cabocla desaparece, sem sequer fazer ruído no assoalho.
Ele fica remoendo as palavras dela, culpado, gerador de um conflito inexplicável. Bate as teclas da velha Remington, sem ânimo, como se estivesse em transe. Depois de horas a escrever, sente o corpo pedir cama. Não viu a hora passar, já é noite.
Exausto e com sono, vai para o quarto sem escovar os dentes e sem tomar banho. Adormece profundamente e sonha com o boto. Ele está na varanda e observa o animal nadando e exibindo as nadadeiras, chegando cada vez mais perto da margem, muito mais perto do quintal. Uma névoa começa a se formar.
De repente, sai de dentro da névoa um homem, que sobe a rampa de barro e caminha em direção à rua. O homem usa um chapéu branco; é magro; caminha com muita segurança e com passos firmes. Francisco se mexe na cama intensamente, como se tentasse tirar alguém de cima dele. Nesse momento, o sonho passa para dentro da floresta, logo depois do salvamento, naquele exato momento em que o boto deixa de ser um mito para tornar-se uma personagem real.
O professor vê uma onça e, com a agilidade de quem está sonhando, sobe em uma árvore, apavorado. O galho não suporta o peso e arrebenta. Com o coração saltando pela boca, o professor despenca em uma trilha. É seguido por uma garota de vestido branco e sandálias baixas, com um pingente dourado na alça de couro. A sandália sai do pé da garota no meio da trilha. A garota também corre de alguma coisa, talvez da mesma onça. Ela é derrubada no chão e a cara é de pavor. Nessa hora, suado e assustado, o professor acorda.