O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

XI. Luxúria e angústia

Uma casa feita com muito capricho, para receber pessoas ilustres, enorme mesa para jantares especiais e uma escada para o segundo andar, toda talhada à mão por índios. O piso de madeira maciça, calafetado com a borracha dos antigos

seringais, resgata os tempos de prosperidade da borracha. Uma geladeira nova, com seus puxadores cromados, comprada na capital, e um fogão a lenha, que destoa, tornam mais real o ambiente no Pombal de Xavier.

Os convidados mais antigos, o gordo Abreu e a ruiva, sobem as escadas. Katerine segura a mão do convidado mais novo, que não está acostumado com esses contatos íntimos. O professor só relaxa ao perceber que se trata da anfitriã. É levado para o segundo andar, seguido de perto por Jean.

Algumas portas cercam o salão no segundo piso, dando a impressão de serem aposentos. Várias almofadas espalhadas em cima de um maravilhoso e macio tapete de pele de carneiro dão clima surreal ao combinarem com uma pequena réplica de um coreto de praça, feito de madeira e ferro, com grandes plumas coloridas, lantejoulas coladas em suas colunas, coberto de purpurina e paetês da base ao teto. Luzes apontam para o centro, local preferido para performances e para os saraus. Uma vitrola, com discos de música francesa, italiana, alemã e russa, chama a atenção.

A francesa lança-se sobre as almofadas. Bate com uma das mãos no tapete, convidando o novo visitante a sentar-se. Francisco se acomoda com uma taça de vinho que Katerine segurava com a outra mão. Jean conversa com os convidados mais antigos, entre os quais está um japonês que distribui doses generosas de absinto.

À medida que o vinho desce, mais íntimos se tornam os convivas. Katerine se distrai com a chegada de Manuela e Roberta, italianas lindíssimas, pesquisadoras responsáveis por um trabalho sobre a fibra da juta em Xavier. Mais dois homens chegam à casa. De mãos dadas, trocam afagos. Francisco esconde o desconforto.

Outras mulheres, moradoras da vila, e alguns homens nativos, jovens, se juntam ao grupo na casa da colina. Todos se sentam no chão, descontraídos, rindo. Bebem e dançam, ao som de ritmos variados, a maioria música europeia.

No meio da sala, as duas italianas se beijam com sofreguidão. Erguem as taças e batem no alto gritando:

— Um brinde a tudo que não presta! Porque tudo que não presta…é muito bom! É bom demais!

Jean avança e fala:

— É com grande honra que apresento um convidado especial e amigo. Francisco Bonartério, antropólogo e pesquisador, visita a casa do Pombal pela primeira vez. Ele é um grande estudioso. Vamos aplaudi-lo.

Surpreso, o mestre agradece. A timidez impede maiores manifestações. Jean e Katerine dão início ao sarau com a leitura de poemas carregados de erotismo. Nada que retrate especificamente o lugar, como botos ou virgens violadas no rio, mas textos que expõem a natureza humana em toda a sua essência, marcadamente universais.

Jean se diverte quando Amelinha beija a italiana Manuela na boca. Roberta troca carícias com Abreu, os quatro enroscados, em êxtase.

Katerine leva Francisco de volta para o tapete e lhe serve uma bebida verde, com gosto de ervas, na cuia do tacacá. Não demora muito e um véu escuro toma conta da mente embriagada do pesquisador. Os gestos pesam, a fala perde ritmo, lenta e baixa.

A francesinha, para acalmar Francisco, beija-o na boca enquanto lhe arranca a roupa e também se despe, a nudez incandescente. Depois de muito tempo, naquele lugar, com aquela mulher, Francisco se entrega sem reação. Toda a sua libido sublimada durante anos, desde a traição de Clara, e pelos acontecimentos provocantes dos últimos dias, verte intensamente.

Ao ver a cena, Amelinha quase evapora de tanta volúpia. Deixa as italianas com Abreu e Jean e, engatinhando pelo tapete, vai até o casal. A francesa aceita, com um sinal de cabeça afirmativo. Amelinha multiplica mãos e braços e boca numa louca apropriação, ela e o professor, uma ânsia, apetite, contentamento, ali mesmo, na frente do amante e da anfitriã. Uma gula nunca vista por Abreu.

Nesse momento da festa, as coisas estão fora do controle. O desespero toma conta do mestre ao reconhecer Janaína e Jonas, o filho do boto, entrando no ambiente. Eles olham para o forasteiro entregue à luxúria e se divertem. Estão vestidos com as mesmas roupas usadas naquele quintal baldio. Surpresos com a presença do professor na casa do Pombal, os dois não sabem se tiram as roupas também ou se ficam só olhando o novo integrante do clube da colina.

Francisco afunda em desvario, destituído da razão, movido pelo instinto. Com uma e logo com outra, Amelinha e a Francesa, o professor desbrava territórios insondáveis sem pensar nas consequências, bem no meio do tapete.

O auge é aguardado com ansiedade. Mas um véu escuro toma conta da mente de Francisco e a luz vai se apagando aos poucos, braços e pernas se desenrolam, odores se dissipam e o professor ergue a cabeça do travesseiro da cama, suando horrores, em seu quarto, na casa de frente para o rio Madeira.

Telma está no quintal falando com Messias. Francisco ouve a conversa, mas não entende. Seu único pensamento é o rio, correndo solto lá fora. Sente uma enorme vontade de cair na água. A cabeça está por explodir. Tenta levantar-se, mas o mundo gira. Ele luta para impedir que a culpa tome conta do seu espírito. Confunde realidade e fantasia. Delira. A saída, neste momento, é não pensar. Nada aconteceu e nunca viu aquelas pessoas. Não precisa assumir nada, muito menos temer alguma coisa. Não prejudicou ninguém. Terá de continuar o trabalho, relacionando-se, a partir de agora, com o menor número possível de pessoas. Vomita – e só então nota a presença da vizinha, em pé, a seu lado com uma cuia de tatacá bem quente.

Os dias passam lentamente, sem pressa para nascer e sem hora para morrer. O calor está sempre presente. Francisco Bonartério se aliena em seus afazeres. As pessoas reconhecem e se rendem com cautela ao seu brilhantismo. É surpreendente, mas a empreitada científica na selva, a princípio amarrada por indefinições, começa a dar certo. As pesquisas avançam.

Trancado na saleta, Francisco se protege do mundo externo. Sai apenas nas horas marcadas, e sempre com o propósito específico de entrevistar algum nativo. Com o passar do tempo, que na região se mede pelas intermináveis e constantes subidas das águas, o acadêmico finalmente conquista espaço.

O material coletado é de riquíssimo valor antropológico e cultural, com relatos e contos impressionantes, até comoventes. Com as entrevistas e análises profundas do imaginário das pessoas, Francisco revê suas opiniões sobre as lendas e martela o papel com a sua Remington, cravando as letras que formarão novos antropólogos ao final do seu trabalho.

“Como podemos julgar o povo deste lugar? Como podemos culpar a sociedade se o social quem faz somos nós? Responsabilizaremos quem? No caso das garotas sempre aparecendo grávidas, de boto ou não, refletiremos e tentaremos analisar os acontecimentos de dentro para fora. Sendo assim, a responsabilidade é dos visitantes que por ali passam, seduzindo, por serem forasteiros, e seduzidos pela beleza das mulheres amazônicas e que mantinham e mantêm relações sem amor, única e exclusivamente por prazer. Então, de quem é a culpa: da fêmea sedutora da região ou do macho visitante? Eles são irresistíveis para elas, mesmo quando trazem esposa e filhos.

Os índios nesta região de Xavier, após arrancarem os cabelos da virgem, prendem as meninas por dois anos. O único direito delas é de acompanhar os acontecimentos da aldeia por um buraco, um furo na oca bem rústico, medida esta que beira a crueldade, sendo, porém, inspirada uma sabedoria imponderável. Quando elas saem do cárcere privado de suas ocas, estão prontas para casar. A sabedoria milenar identifica o problema no cheiro, no hormônio que enlouquece todos os machos num raio de um quilômetro.

A cultura herdada por essas bandas, com suas alterações e adaptações, é quase a mesma dos povos extintos habitantes deste lugar. O povo demonstra uma capacidade de ser altamente cuidadoso com os seus. As meninas convivem com a presença do macho o tempo todo, sem serem encarceradas. Não há mais referência ao que seria a natural causa da precoce gravidez: o odor, o hormônio. Vivem sem precisar de polícia, mesmo que esta exista como instituição. No fundo, as coisas continuam sendo resolvidas pelo povo e para o povo.

Um cuida de todos e todos de um. É o que restou da sabedoria, que foi massacrada, corrompida e fragmentada pelas tradições arrogantes e prepotentes do europeu. Ao aportarem aqui, os colonizadores não conservaram o que poderíamos chamar de todo o conhecimento. O choque gerado por essas duas culturas, além de outros conhecimentos equivocados, está deteriorando toda a harmonia da floresta. Resumindo: a cultura avançada dos europeus acabou com tudo o que era correto e harmônico, deixando o incorreto e o caótico.”

 

Os detalhamentos de alguns aspectos relacionados ao âmbito sociocultural contribuem para tornar a obra mais próxima da realidade. O mestre redige seu relatório imbuído de uma precisão e rigor dignos de um verdadeiro cientista.

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