O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

X. Encontros inusitados

Francisco Bonartério busca a terra de chão das trilhas para rever seus primeiros dias na comunidade, com muita angústia no peito. As dificuldades começam a se revelar. Não está conseguindo desenvolver o trabalho com disciplina, profissionalismo e imparcialidade. A cada instante se vê mais distraído dos seus afazeres e envolvido com as personagens dessa magnífica e assustadora localidade.

 

Os caminhos da mata são afrodisíacos, reza a tradição em Xavier. Sem saber disso, o professor busca explicação para a permissividade em torno. Irritado, ele respira o ar da manhã perfumado pelas flores de laranjeiras que brotam por toda a vila e depara com mais uma situação inusitada.

Ao levantar a cabeça, dá de cara com Maria, a meio tantã segundo o caseiro Messias. É o segundo encontro deles por acaso. Dona Maria sorri para ele, e diz com bastante serenidade no tom da voz.

— Ainda não apareceu lá comigo, moço. Tenho recebido muitos sinais que lhe dizem respeito. Preciso fazer um trabalho com o senhor urgentemente. É pro seu próprio bem. Caso ainda não saiba, existem muitas forças trabalhando contra o moço aqui na floresta. Vai precisar aprender a se proteger.

Sem esperar nenhuma reação, dona Maria cobra a presença do mestre nas terras sagradas de seus ancestrais. Ele não presta muita atenção nas palavras da senhora. Maria aparece e some rapidamente, antes mesmo que Francisco pudesse elaborar uma desculpa para justificar a ausência nas tais reuniões para as quais já havia sido convidado. Misteriosa, deixa uma bruma leve no ar.

Adiante, Janaína, mãe de Irina, surge sozinha. Ele se esconde rapidamente atrás de uma árvore. Embora saiba que não deve nada a ninguém, e que não teve culpa do assédio matinal, Francisco decide apenas ser precavido para evitar possíveis conversas inconvenientes.

Sem ser notado, o professor ouve um assovio de um terreno baldio. Jonas, o filho do boto, aparece de trás da cerca de um velho quintal abandonado e chama Janaína pelo nome. A mulher entra no mato correndo. Sem hesitar, se arremessa nos braços do moço. O professor presencia a cena. Traição. Clara.

Janaína e o filho do boto fazem sexo ali mesmo. De pé, sem pudores, sem cuidados, sem amor.

— Tal mãe, tal filha – resmunga.

Absorto, revela a sua posição. Jonas não gosta nada de ver o forasteiro passando por ali. Por intuição, some sem deixar rastro.

Francisco segue para a praça, para no boteco de Miro. Não imaginou na hora, mas era certo que o patrão estivesse por lá, enfiado no álcool.

— Manda uma pinga.

Miro serve o professor. Antes de virar a dose ele reconhece Lindemberg sentado em um canto, entre caixas vazias de cerveja e uma parede suja, perto do banheiro, no lugar mais escondido e nojento do bar.

Os dois se cumprimentam com olhares e expressões, erguem os copos juntos, brindam sabe-se lá a quê e descem goela abaixo a bebida dos atormentados.

Ávido por entender o comportamento das pessoas em Xavier, Francisco decide puxar conversa e se dirige até o patrão. Em tom ameaçador, ouve:

— Eu quero mesmo falar com o senhor, professor.

Nesse instante, o mestre lembra-se de Irina e hesita, com a coragem desbotada. O chefe da vila faz cara de amargurado, a língua enrolada pela cachaça.

— Não sei se o senhor sabe. Deve saber, é um homem estudado, sabe das coisas. Mas essas histórias, de boto e filho de boto, é tudo conversa fiada. Conversa pra boi dormir.

Lindemberg diz e olha muito sério. Com seus modos grosseiros, assusta o forasteiro.

— Ah, é isso? Concordo com o senhor.

Lindemberg continua suas lamentações:

— Sabe por que eu digo isso?

— Sobre o boto?

— Sim, é sim, é sobre o boto. O senhor precisa saber toda a verdade. Eu sou um boto!

Sem dar tempo para o professor digerir a frase, em franca contradição, o patrão dispara:

— Não existe boto nenhum.

— O senhor já disse isso.

Impondo o respeito que os donos das terras cultivam, Lindemberg intimida:

— Não discuta comigo! Eu sou o boto, o único qu’eu conheço por essas bandas. Existe um filho de boto por aí, desgraçado. Mas boto, boto, só eu mesmo.

Francisco puxa prosa com o dono do boteco:

— É Miro o seu nome, não é? Que história é essa de boto?

Quer mesmo saber onde essa conversa vai dar, mas o velho Miro só responde o suficiente:

— Não liga. Ele sempre diz isso quando está de lua. Esses últimos dias ele andou bastante perturbado.

A carência e a pinga soltam a língua do povo. Francisco paga a conta e, sem se despedir do patrão, vai embora. Miro agradece.

Andando pelo que encontra de sombra, confuso com o turbilhão de situações e atarantado por causa da bebida, Francisco cruza com o velho gordo do navio, de chapéu branco e charuto na boca. Também meio bêbado, o homem está bem informado.

— Professor Bonartério. Está sem rumo em Xavier? Abreu Mascarenhas Salvador. Posso ajudá-lo? Estou aqui a negócios, mas já soube das suas pesquisas. Trato meus assuntos diretamente com quem manda, o senhor Lindemberg, o patrão, mas parece que ele está inacessível.

Levantando a sobrancelha direita, Abreu convida o mestre para um sarau

na casa onde está hospedado.

— São uns franceses que moram aqui em Xavier e cuja casa fica bem no alto da colina. Um lugar conhecido como Pombal de Xavier, dentro de uma área reservada para os biólogos, onde se formou uma comunidade de estrangeiros excêntricos.

O professor se incomoda com o tom arrogante, mas relaxa diante do convite inesperado, até inoportuno. Uma conversa agradável neste começo de tarde amazônica seria, talvez, a saída perfeita para seus problemas atuais.

Francisco aceita, movido pela curiosidade. Os dois aguardam pela chegada do transporte, uma charrete mal adaptada ao cenário local. O veículo desponta na praça tocado por uma ruiva, a mesma do convés, namorada ou amante de Abreu, supôs o professor.

— Amelinha, meu amor.

O mestre se apresenta, beija a mão da ruiva.

— Francisco Bonartério.

A ruiva lembra dele e solta a mão rapidamente. Abreu informa que a companhia de Bonartério, nas próximas horas, será compartilhada por todos os residentes do Pombal de Xavier. Amelinha suspira, com discrição, como se o convidado fosse um bônus.

A primeira chibatada chega a doer na pele de quem vê. Estala no couro do bicho, que dispara alucinado. O animal apanha ao sabor dos caprichos da condutora.

 

O professor não faz ideia do lugar para onde está indo, mas pensa no tal Pombal com entusiasmo. Chegando perto do topo da colina, a torre do Pombal é avistada. O convidado se admira com a casa. Dois andares de madeira trançadas artesanalmente e pintadas de branco, uma torre de observação que lembra muito um pináculo fálico e cimeira ornamentada, caracterizando uma estranha arquitetura, plantada bem no meio da floresta, a oeste. O casal de gringos, Jean e Katerine, recebe os visitantes. Todos falam português bem falado.

Katerine, com uma taça de vinho tinto na mão, cumprimenta o professor. Jean o abraça qual um velho amigo. Os dois homens entram na magnífica casa. Abreu segue a ruiva, que não tira o olho do pesquisador. Katerine compreende. As duas se entenderam muito bem desde o primeiro dia em Xavier. Até porque já haviam dividido muitas coisas, inclusive os parceiros.

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