O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

IX. Alvorada da libido

O sol chega com fúria, e a natureza mostra mais uma vez a sua força. As águas continuam subindo em ritmo frenético. A claridade invade o quarto pelas frestas das tábuas que ainda estão mal vedadas, mostrando que já é hora de pular da cama. Um demorado banho é uma terapia relaxante nesse clima tórrido, próximo da linha do Equador.

O professor segue para sua saleta e recomeça suas leituras. Do lado de fora, Messias revira o capim, bem embaixo da janela da cozinha. Meio distraído, sente uma sombra passar por trás dele. Vira-se e nota a presença da espevitada filha do patrão, atravessando o quintal a passos largos.

Irina vai entrando e chamando pelo professor, que fica surpreso ao identificar uma voz feminina que não a de Telma. Cheia de energia, a menina aparece sem pedir licença, usando um vestidinho de pano leve, comum entre as garotas da região, e que cobre, suavemente, as curvas bem definidas dos corpos morenos e cheirosos:

Irina anda pela casa, bisbilhotando. Logo confessa, com um certo enfado:

— Eu estava passando e resolvi fazer uma visita. Aqui a gente sempre vê as mesmas pessoas.

O professor tenta manter um diálogo de cortesia. Raciocina, ganhando tempo para livrar-se da encrenca ameaçadora em forma de pernas perfeitas e bem visíveis.

— Você tem razão. Nas cidades pequenas tudo o que acontece acaba sendo do conhecimento de todos e a visão constante das mesmas caras é inevitável.

A capital é uma realidade distante por ali, na remota Xavier, e o que a jovem não sabe é que o pai tem uma segunda família, razão pela qual, no que depender dele, Irina jamais colocará os pés em Manaus.

Grande parte das garotas dessa região tem a sensibilidade muito apurada. Embora vivazes, atravessam a vida reféns do chão que pisam. A única saída, geralmente, é um casamento afortunado.

Algumas até se arriscam nas capitais e, com muito esforço, conseguem espaço para se manter com dignidade. Muitas, no entanto, lutam para não virarem prostitutas no porto de Manaus.

A filha de Lindemberg, com romances proibidos e algumas amizades impróprias, revela uma rebeldia comum entre os jovens, com o realce da inteligência e de uma impressionante beleza selvagem.

Irina escapou da gravidez na adolescência, contrariamente ao que costuma ocorrer com outras garotas. Não é infantil, mas uma mulher blindada pela sagacidade. Ciente das suas limitações no campo da erudição, imagina-se um dia na faculdade. Nesse momento, porém, movida por outros desejos, foge de assuntos que lhe são estranhos, como pesquisas antropológicas ou análises socioculturais, e desembainha suas armas.

Decidida, Irina vai para a janela e enxerga Messias limpando o quintal. Com o busto debruçado para o lado de fora, deixa-se ver de costas pelo professor. O vestidinho curto sobe ainda mais, revelando duas bochechinhas que se assemelham a maçãs untadas. Como num balé de sedução, a jovem parecia ter ensaiado a noite inteira os movimentos da dança do acasalamento.

Francisco se arrepia. O impulso é de partir para cima, perder-se de vez nos prazeres da carne. Inquieto, ele se recompõe da ebulição momentânea provocada pelo jogo que o impede de manter sua concentração. Precisa tirar Irina daquela posição, e chama a atenção da moça para o tema da tal vaga na faculdade que ela tanto almeja em Manaus:

— Talvez façamos um teste para vermos até onde vai o conhecimento da senhorita, uma prova escrita, quem sabe?

Diz essas palavras sem conseguir parar de olhar e gagueja um pouco. Atordoado com a situação, pega um bule de café sobre o fogão. Irina nota a fuga e, sentindo ser um bom momento, parte para ação direta:

— Posso provar o que for, o que quiser, pode ser aqui ou onde achar melhor. Depende só do senhor.

Surpreendido pela intimidação e pelo ataque da moça, o professor não faz mais nenhuma ideia de como agir. Nervoso, derruba o copo de alumínio. O movimento da jovem é preciso e ligeiro:

— Deixa qu’eu pego pro senhor.

Rapidamente, Irina deixa-o completamente encurralado, entre o seu corpo e a cadeira. Pegando o bule e o copo, serve o café, segura a mão dele e a coloca sobre o pequeno corpo, sem que ele reaja. A fumaça leve e cheirosa domina o ambiente. O mestre se sente paralisado e constrangido. Percebe que sua mão está queimando.

Francisco briga com ele mesmo. Afastando-se bruscamente, num salto, derruba a cadeira, como se tivesse visto assombração. O estrondo do objeto caindo no assoalho da cozinha o deixa ainda mais nervoso e sem jeito.

— Por favor, vá embora, isso poderá trazer problemas para mim com o seu pai.

A menina tenta acalmá-lo:

— Não se preocupe…Ninguém vai ficar sabendo, ou o senhor acha qu’eu sou uma menina tola? Acha qu’eu não sei o que estou fazendo?

Irina chega perto, mas o mestre se afasta, à medida que a cunhantã ameaça aproximar-se. Apavorado, livra-se de uma vez por todas da encrenca:

— Só quero você fora daqui. Por favor, me desculpe, mas não posso fazer isso. Sua juventude não a deixa ver o problema que está me criando.

Ela não se dá por satisfeita e, sem entender essa atitude, indaga:

— Por que não?

O professor se acalma, ela não crê na situação. Não o culpa, afinal ele não é da vila e não faz a menor ideia de como as coisas costumam acontecer por ali. Os relacionamentos são compartilhados com frequência. O ex-marido de uma é casado com a irmã da ex-mulher, que já foi casada com o primo, e assim vai. O importante por aqui é resolver primeiro o incêndio dos corpos, depois o resto.

Atordoado, o mestre pensa na traição. Clara, sempre ela. Instintivamente, leva a mão à testa. A garota, sem saber dos conflitos dele, não quer desculpas.

— Quem foi que disse que o senhor não pode? Foi meu pai, foi? Não se preocupe com ele. Minha mãe dá muito mais trabalho pra ele que eu, quer apostar?

Irina revela intimidades da família, o jogo libertino, de infidelidades contínuas, dentro e fora de casa, em que pai e mãe estão mergulhados. Francisco reage:

— Não me interessa a vida pessoal de vocês, só me faça o favor de me deixar trabalhar, tenho muitas anotações por fazer, queira me dar licença.

 

Sério, estica o braço e aponta a saída. Está visivelmente transtornado.

Irina lamenta, dá de ombros, se vira para sair. Francisco agradece a Deus. Com um nó na garganta, vai para a saleta e procura se concentrar no trabalho. Pega suas anotações, mas não tem atenção. A sedução da garota mexeu com as suas estruturas. Esfrega os olhos e passa a mão no cabelo e na testa. Respira fundo, solta o ar, como se estivesse no fim de uma longa jornada:

— Preciso sair daqui.

Desesperado, como se estivesse numa síndrome do pânico, levanta-se. Do lado de fora, o caseiro repassa em detalhes o acontecido há pouco na cozinha. Messias observou a cena, a distância. Telma chega.

— Eu vi ele sair de perto da cunhantã, vizinha. Quase não acreditei, mas ele saiu voado!

— Ele é digno de confiança. Um homem que não cede às tentações da carne, isso é bem raro.

Messias reforça a sua surpresa, querendo insinuar alguma coisa que prefere não dizer. Telma defende o professor.

— Não tem nada demais, não, Messias, ele é muito respeitador.

— A senhora tá certa disso? Se a senhora tá dizendo, não vou discutir.

Telma e Messias param de falar quando Francisco resolve sair de casa e passa perto dos dois sem olhá-los e sem dizer nada.

Telma, ao observá-lo saindo, deixa escapar suas questões íntimas pela boca mal fechada.

— Mas o que faz esse homem ser assim? Ele deve ser casado. Por que não perguntei naquela noite? Mas eu vou descobrir.

Messias reflete:

— Onde existe mais mulher que homem, as coisas ficam desse jeito. Um homem de fora, de outra cidade, fascina as mulheres de Xavier.

Rolar para cima