O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

VIII. A velha Remington

De volta ao aconchego da casa, Francisco acende as lamparinas e deixa o caderno de anotações sobre a mesa. O cansaço provocado pela viagem é um convite para um banho relaxante. Embaixo do chuveiro, enquanto a água escorre pelo corpo, relembra as conversas com Ayrão. Distraído, nem percebe que a memória é assaltada pela presença de Telma. Primeiro, revive o momento em que, ainda na catraia, a cabocla molhou o lenço e passou-lhe no rosto. Depois, a contagem das estrelas. Subitamente, o professor tem uma ereção.

Francisco procura concentração para o trabalho. Vai para a saleta e observa o ambiente, passa a mão suavemente sobre a máquina de escrever. Nenhuma poeira, parece que Telma passou por ali antes dele. O lacre do maço de papel é rompido e a resma se espalha pelo chão. Francisco não se abala, agacha-se, junta as folhas, uma a uma, e as guarda ao lado da velha Remington. Uma das folhas é escolhida, destacada das demais. Delicadamente, suas mãos medem as pontas da folha, o nível está batendo, a máquina trava o papel que rola para cima ajustado.

Francisco respira fundo enquanto seus olhos, fechados, se abrem lentamente.  A inspiração bate forte e seus dedos ágeis, implacáveis, buscam as teclas desgastadas pelo tempo, sem hesitar. O silêncio do ambiente selvagem é quebrado pelas marteladas das letras no papel. Rapidamente as palavras vão dando sentido aos pensamentos científicos e suas análises críticas sobre as conversas, inloco, desta tarde.

“O órgão sexual do boto, tanto do macho quanto da fêmea, é idêntico aos órgãos sexuais feminino e masculino. A semelhança entre os órgãos genitais humanos torna verossímil a experiência sexual insistentemente relatada pelo folclore e, certamente, contribui para intensificação do simbolismo do mito.

A vagina da bota contrai-se inúmeras vezes mais que a de uma mulher, dando uma sensação de prazer muito maior. Outra coisa: quando faz sexo com uma bota, o homem está fazendo sexo com um animal. Após a cópula, ele mata a bota, talvez com medo de uma gestação. Depois de morta, a bota é mutilada, e o algoz arranca a genitália para usar como amuleto. Dizem ser muito bom para atrair as mulheres.

Já a mulher, quando faz sexo com um boto, na verdade não está fazendo sexo com um bicho e, sim, com um homem, um homem encantado e extremamente sedutor. Quando uma mulher engravida de um boto, é perdoada, pois não existe culpa ou acusação. Obedecendo a ordem das coisas, os novos antropólogos da região dão o nome de sobrenatural-natural, ou seja, é o sobrenatural encarado de forma natural e real.

Outros relatos sobre o boto também são considerados. Pessoas que foram salvas por um boto fazem do assunto um celeiro de informações desencontradas, um verdadeiro paradoxo para digerir.”

O pensamento tem uma pausa. Francisco reflete sobre suas aventuras na floresta e se desanima. “Espero concluir a pesquisa até o fim deste mês. Sinto falta da grande cidade”, pensa.

Telma percebe a pausa, o silencio das teclas deixa um suspense no ar. Ela atravessa o quintal no momento em que o professor se levanta para pegar um copo d’água na cozinha e se deixa ser vista. A visão da mulher é inspiradora.  Ele tenta não olhar muito. O passeio pelo rio, no meio da floresta, na companhia da bela morena, despertou algo adormecido no DNA desse cientista da antropologia que fica sem saber se vai ou se fica sentindo mais uma ereção a caminho.

No quintal, o mestre nota que a mesa está cuidadosamente posta na varanda. O céu é um convite à contemplação. Telma se aproxima com o panelão de caldo de peixe e aqueles seres de mundos tão diferentes se olham como duas crianças famintas, só que com extrema educação.

Nesse microcosmo não há pressa para se viver. Os barulhos e os cheiros são outros, tudo é diferente, e as pessoas podem apreciar, na água, o reflexo da lua em quarto crescente.

A distância, Messias ateia fogo ao mato capinado. A quentura da fogueira une-se ao calor da mulher, fogosa, que insinua timidamente seus desejos, de forma quase despercebida. Alheio à presença dos comensais, o caseiro se retira, certo de ter cumprido suas obrigações. Telma quebra o silêncio quase cúmplice com mais uma intrigante história:

— Nosso Messias viveu a história na pele.

O professor não entende, mas ela continua:

— A mulher dele foi enfeitiçada pelo boto. Ficou grávida e se matou afogada.

Revela o segredo de uma forma rápida, pegando de surpresa o seu incrédulo interlocutor. Vendo as coisas meio atrapalhadas e sem nexo, o professor exclama:

— Meu Deus!

Espantado com mais essa, indaga, muito apavorado:

— Aqui na frente?

Compreende agora onde a vizinha queria chegar, e ela esclarece rapidamente:

— Não, no lago. Na frente da igreja de São José.

—Por que essa cara tão triste?

— Aquele lugar é amaldiçoado. Foi lá que mataram o meu p…

Telma não consegue terminar a frase, suas lembranças daquela noite terrível ainda estão guardadas em gavetas muito visíveis e fáceis de encontrar.

— O seu o quê, Telma?

Telma recobra o raciocínio e responde letárgica.

— O boto, o boto… foi lá que mataram ele. Aquele lago é cheio de tragédia. Maldições aceitáveis.

Francisco admira a beleza simples dessa gente.

— É o sobrenatural-natural.

Ela olha nos olhos do professor:

— Não entendi, professor.

Ele tenta explicar:

— Lendas, maldições, fazem parte de um imaginário, de um inconsciente coletivo que transforma o sobrenatural em cotidiano naturalmente, só isso.

Cético e confuso, depois do susto, coçando o queixo, o professor questiona a informação, sem perceber a ofensa que poderia causar.

— Você acredita mesmo nessas histórias?

Telma respira fundo, soltando o ar pela boca, mas sem sentir-se insultada.

— Existem coisas que a gente não questiona muito. Às vezes, é melhor acreditar nas lendas.

Ele procura achar uma razão para convencê-la do contrário.

— O suicídio da mulher, por si só, já foi uma desgraça.

— Poderia ter sido maior, revela, com inteligência, a vizinha.

Francisco se mostra ainda mais confuso:

— A senhora bem que poderia ser mais clara.

Por um instante, o professor se pune por ter pronunciado, sem querer, o nome da maldita adúltera.

— Não existe nada claro. As coisas são como elas são. Vivemos nossas vidas, apenas isso. Não nos preocupamos em esclarecer as coisas profundamente.

O professor não compreende o fato de as pessoas da região não precisarem, nem quererem, saber de tudo, pois não aceita que o que elas sabem já é o suficiente para conviverem em harmonia com a natureza.

Telma olha fixamente para o intelectual. O professor esforça-se para ter o mesmo ponto de vista que a nativa e não parece mais importar-se em verificar quem tem razão.

— É. Talvez seja uma forma de encarar a vida. Não me enquadro nesse perfil.

Ela alivia seu jeito de olhar, dando oportunidade para ele mudar de prosa. O professor compreende, assimila muito bem a mensagem, e muda de assunto.

— A senhora é daqui mesmo? Não falou muito sobre a senhora.

Demonstrando interesse, o mestre espera uma resposta. Atenta aos detalhes, ela responde meigamente:

— Já lhe pedi para não me chamar de senhora.

— Desculpe-me, não consigo evitar, mil perdões.

Ela sorri e continua:

— Não há muito o que dizer de mim.

Francisco perde uma grande chance de fazer um oportuno elogio. A paixão platônica o deixa congelado, incapaz até mesmo de manifestar sua discordância. Telma se abre para uma revelação:

— Já fui casada.

Ele não esperava uma afirmação tão direta, nem o encaminhamento da conversa para um plano já tão pessoal. Meio sem jeito, assume outra postura, como que para disfarçar o embaraço.

— Separada ou ele tá viajando?

Então, a cabocla diz suavemente, sem nenhum resquício de dor:

— Sou viúva. Meu marido não era daqui, que nem o senhor. Era um excelente médico. Tratava o pessoal da vila com muita dedicação. Havia muita malária, coisas que nunca foram daqui da nossa região, mas um dia foram trazidas e ficaram.

— Sinto muito. Se me permite, foi de malária?

— Não, ele foi assassinado.

Diante daquele choque, o acadêmico sufoca-se com a farinha, e faz uma imensa força para não tossir muito nessa hora, enquanto Telma continua a história.

— Ele foi defender uma mulher que apanhava do namorado, num bar em frente ao posto médico. Conseguiu tirar o camarada de cima da mulher e deu umas bofetadas no safado.

— O que houve, o rapaz tinha uma arma?

— A mulher do cara, toda ensanguentada, quebrou uma garrafa e deu três estocadas nas costas do meu marido e ele morreu ali mesmo. Disseram que saía dez centímetros do chão pelos espasmos quando entrou em choque.

Francisco observa quieto, parece ter esgotado suas perguntas inadequadas para um jantar à luz do luar. Numa atitude inédita, ele segura a mão da vizinha com um ar de preocupação:

— Por que sou tão idiota?

Mas nada diz além dessa indagação despropositada e, mais uma vez, é Telma quem quebra o silêncio:

— Não se preocupe, já superei essa parte da minha vida. As pessoas têm o coração muito bom, mas, às vezes, algumas delas nos surpreendem. Tome cuidado.

A vizinha tenta prevenir o novo amigo:

— Principalmente com as mulheres. Elas atraem muita confusão e algumas são amaldiçoadas, assim como eu…

— Não usaria a palavra amaldiçoada…

Sem querer, Telma deixa os seios à mostra. O vestido, aberto em cima, está com um dos botões fora da casa. O professor começa a suar. Sente mais uma vez a ereção se manifestando.

— E qual palavra o senhor usaria?

Ele sabe bem qual seria a palavra, mas, sem saber como agir, só lhe resta levantar-se imediatamente, escondendo o volume nas calças, indo na direção da cozinha da casa. Telma não compreende, mas admite para si que algo de especial rompe o seu peito sempre que está na companhia do professor. Ela chega à conclusão de que nunca teve um jantar tão maravilhoso, mesmo que agora se ache sozinha na varanda, abandonada repentinamente pela companhia mais adorável que ela teve nos últimos anos.

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