O Cobrador da Amazônia

Autor: Chicco Moreira

VII. Cúpula de estrelas

Nenhum fator externo afeta o cotidiano das pessoas naquele pedaço de mundo. A única lei é a da selva. Os aldeões temem apenas o poder das águas. Místicos, agradecem por cada dia de fartura.

Ayrão, como muitos caboclos, não abre a guarda, e olha desconfiado para o visitante. O mestre espera. A vizinha apresenta o professor, mas não revela as verdadeiras intenções da viagem.

Telma, Messias e Ayrão conversam sobre assuntos ligados à vila, à pesca e à comunidade. Ela explica ao chefe da vila o motivo da presença do professor ali e pede a colaboração de todos. Ayrão dá uma gargalhada:

— Mas é só isso? Se é história que o senhor tá querendo, então veio no lugar certo!

Com carinho e reverência, Telma segura o pescador pelo braço e o conduz para uma sombra agradável de uma acolhedora laranjeira que exala perfume e deixa o ambiente propício para uma boa prosa.

O aroma das flores da frutífera árvore se confunde com o perfume de         Telma. Francisco esforça-se para manter o raciocínio. A conversa flui sem maiores constrangimentos. Diante de todos sentados em um tronco de árvore, o professor anota. Tudo é importante. Afinal, a missão tem caráter investigativo.

 

Depois de algumas palavras, o grande líder da vila convoca um grupo de nativos que formam uma roda em volta de Bonartério. Gente muito simples, com energia e sabedoria imensas. Essa é uma aldeia sem certidão de nascimento, com famílias inteiras de bisnetos, netos, filhos, pais e avós sem qualquer registro público, ou seja, inexistentes para a nação, vivendo apenas do extrativismo de subsistência, sem exigir e sem exercer qualquer direito.

Ayrão acena para um dos nativos, que relata caso tido como verídico.

— Minha sobrinha, filha da minha irmã, ficou maluca. Na virada do ano passado, ela dançou a noite inteira com um homem desconhecido, na praia, na beira do rio. No dia seguinte é que foi a complicação. Ela acordou e a primeira coisa que fez foi voltar no local da festa. Ficou lá o dia inteiro olhando pras águas; nem almoçou. Isso se repetiu durante dois meses, até que um dia ela entrou no rio e quase morreu afogada. Sorte que seu Ayrão vinha passando na catraia dele e salvou a bichinha.

Francisco olha para o pescador-chefe, um pouco afastado, que ouve a história e confirma o relato com a cabeça. Voltando para as suas anotações, o acadêmico continua a ouvir o nativo.

— Mas ela nunca mais voltou a ser o que era, ficou meio maluquinha.

Atento, o mestre arrisca uma pergunta:

— E, por acaso, esse homem que dançou com ela, a noite toda, seria um boto?

O pescador, irritado com a indagação cética, e fazendo cara de poucos amigos, exclama, interrogando o próprio entrevistador:

— Mas o quê que o senhor acha?

O nativo encara Francisco, que ainda não se deu conta do risco de contrariar um caboclo e segue com suas anotações.

Outro caboclo lança uma polêmica questão:

— O boto é atraído pelo cheiro do bode da mulher, professor.

— Bode?

O professor surpreende-se e questiona:

— Bode? Menstruação?

Ao compreender o verdadeiro significado de bode, vai logo corrigindo:

— As mulheres, naqueles dias, não engravidam, esclarece o professor, com prepotência.

O nativo não percebe o que o professor quis dizer.

— Naqueles dias?

— Naqueles dias significa que a mulher está de xico, e quando tá de xico, não engravida.

O pescador começa a debochar:

— Chico pra mim é macaco. Aqui a gente chama de bode. Dizemos que a mulher tá de bode e pronto!, sacramenta, enquanto os pescadores riem.

Ayrão observa. Telma, de longe, vê que o mestre está sem graça. Francisco muda de assunto:

— Já está escurecendo, Messias. Vamos partir?

O caseiro obedece. Dirige-se para a catraia e prepara a canoa para a volta. Ayrão, de coração aberto, diz:

— O senhor será sempre bem-vindo nesta vila.

Promete levar um tracajá ovado em breve, para ele desfrutar das delícias mais raras e exóticas da região. Explica sobre o ovo do tracajá, o sabor maravilhoso e a riqueza proteica. Tudo acompanhado de uma boa farinha.

Já embarcados na catraia, os dois nativos de Xavier esperam por Francisco, que está amedrontado pela noite a despencar sobre suas cabeças. Com a fisionomia preocupada, pergunta se não é perigoso retornarem àquela hora. Telma sentencia:

— Que nada, o senhor vai adorar. É lindo!

O vento não para um segundo. Balança a canoa e o vestido, marcando o corpo provocante da bela mulher amazonense. Antes de sentar-se, Telma olha disfarçadamente para o professor e flagra os olhos dele cheios de cobiça. Gosta.

— E vai dar para ver alguma coisa na escuridão?

A pergunta deixa Telma com uma fisionomia meio cínica.

— Na terra, não. Se olhar pro céu, verá estrelas nunca vistas na sua vida, mas precisa entrar na catraia, não vamos partir sem o senhor.

Messias pilota a catraia com grande habilidade. O casal fica sentado, um de frente para o outro. O viajante olha para o rio e para o céu; depois olha para a mulher, confere suas pernas e seios, mas disfarça o interesse sempre que é encarado.

A noite cai rapidamente. Extasiado com tanta beleza, o mestre deixa as palavras saírem naturalmente:

— Que céu maravilhoso! Parece uma cúpula de estrelas. Dá para vê-lo inteiro daqui.

Nesse momento de contemplação, o professor fita Telma um pouco sem jeito, revelando uma sedução suave, terna. Arrisca revelar suas intenções sutilmente, com uma coragem nunca sentida antes. Com efeito, nunca havia se sentido tão poderoso e confiante, mesmo que ainda não seja corajoso o suficiente para levar uma mulher dessas para a cama. Volta a observar as estrelas. Encantado com a Amazônia e toda a magia, diz com os pelos e poros ouriçados:

— A energia desse lugar é, realmente, impressionante.

Mostra o braço arrepiado. Embora a escuridão permita ver muito pouco, ela compreende bem, pois está envolta no clima de sedução. Enquanto toca o braço dele com suas mãos macias e de odor marcante de flor de laranjeira, Telma vai desfazendo o embaraço do professor, mas, simultaneamente, provoca outros tremores.

— Eu nunca vou querer sair daqui, não sei se consigo viver sem isso.

Agradecida por ter tudo ali, acaricia o braço de Francisco. O mestre admira a profunda ligação daquela mulher com suas raízes.

— Gostaria de ter coragem de abandonar tudo e viver nessa paz. A minha vida sempre foi cheia de regras e obrigações.

Intuitiva, Telma percebe um grito de socorro vindo de dentro da alma do nobre intelectual. Segura a mão dele com carinho e respeito. O toque firme e forte da guerreira faz o mestre prestar mais atenção nas suas palavras.

— O senhor não precisa continuar a ser assim. As pessoas mudam, e o senhor também pode dar uma chance para transformações.

O professor alterna os olhares, dirigindo-os por vezes às estrelas e, também, ao movimento das águas. Os passageiros entraram novamente no rio Madeira. A luz do lampião pendurado no alto da árvore, no pé do barranco, logo anuncia a aproximação da casa. O capitão aponta para a rampa e acelera o barco, mirando a luz guiadora. Chegam todos sãos e salvos e, no desembarque, o professor sai antes que a catraia comece a balançar.

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